sábado, janeiro 18, 2014

Memórias de "Garganta Funda" (2/2)

A história cultural de Garganta Funda é inseparável dos dramas íntimos da sua protagonista, Linda Lovelace: o filme de Rob Epstein e Jeffrey Friedman consegue mostrar o seu singular cruzamento — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Janeiro), com o título 'Das imagens e da sua violência'.

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No genérico de Garganta Funda, citado no filme Lovelace, quando Linda Lovelace aparece a conduzir um automóvel, a legenda identifica-a como “Linda Lovelace as herself”. Quer dizer: “Linda Lovelace como ela própria”. Ou ainda: “Linda Lovelace no papel de Linda Lovelace”. Está aí condensada a rudimentar estratégia narrativa da pornografia (hoje em dia reconvertida em muitas formas da chamada “reality TV”): aquele que se vê no ecrã surge compelido a coincidir por completo com o seu próprio ser, de acordo com a noção pueril de que um ser humano está condenado a desnudar-se, real ou simbolicamente, quando está exposto a uma câmara... O tema nuclear do filme de Rob Epstein e Jeffrey Friedman é essa vertigem de exposição, obviamente espelhada na interrogação que suscita: como se sai de tal violência figurativa?
Não é, entenda-se, um filme fácil, sobretudo porque recusa confortar-se (e confortar o espectador) com a dicotomia da pureza “erótica” contra a baixeza da “pornografia”. Não que Lovelace tente escamotear a violência física e moral do mundo que a protagonista descobre. Bem pelo contrário. De qualquer modo, o que Epstein e Friedman filmam é esse assombramento que faz com que um ser humano possa ser reduzido a uma qualquer imagem de marca e, de alguma maneira, compelido a definir-se eternamente a partir dessa imagem (no seu próprio papel).
Nesta perspectiva, Lovelace envolve uma subtil reflexão sobre as imagens na sociedade de consumo, ou melhor, sobre uma sociedade edificada a partir do consumo de imagens. A pornografia não é, afinal, o lado oculto desse consumo, mas sim uma ideologia de instrumentalização do humano que pode contaminar qualquer imagem. Como viver (e filmar) dentro disso? Eis uma das grandes questões políticas do nosso tempo.