terça-feira, dezembro 17, 2013
'The Act of Killing': uma história de violência
Talvez não seja “o” filme do ano como o apresenta a (muito respeitável) tabela apresentada pela revista Sight and Sound. Mas The Act of Killing é um dos mais contundentes exemplos de cinema documental produzidos nos últimos tempos. Realizado por Joshua Oppenheimer e Christine Cynn, leva-nos até Sumatra (na Indonésia) no presente, ao encontro com figuras que há 40 anos foram protagonistas ativos em esquadrões de morte que ali mataram milhares de militantes e simpatizantes comunistas, aterrorizando também muitos dos chineses residentes na região.
O desafio lançado a esses antigos agentes de morte foi o de recriarem aquilo que aconteceu para as câmaras. Um deles, antigo vendedor de bilhetes de cinema e um auto-proclamado 'gangster' (inspirado pelos modelos que via nos filmes de Hollywod), aceita inclusivamente que se filmem as visões que lembra dos seus sonhos (mais pesadelos). Ele, que só pelas suas mãos terá morto cerca de mil pessoas (estrangulando-as com arame para evitar “sujar” com sangue o local onde ocorriam as mortes), relata o que acontecia. Com ele descobrimos outros antigos líderes deste grupo, um deles hoje editor de um jornal local. Muitos destes grupos geraram um grupo paramilitar com ligações ao poder, ministros e altos funcionários surgindo nas suas reuniões e paradas. Numa momento particularmente representativo do que ali sucedeu e do modo como a violência exercida saiu impune de todo este processo, há quem comente que existe a convenção de Genebra, mas que ali há uma “convenção” de Jakarta. Fica claro que vivemos no mesmo planeta. Mas não no mesmo mundo.
The Act of Killing, que entre nós foi exibido no IndieLisboa, acompanha assim os bastidores deste desafio lançado aos antigos líderes destes esquadrões de morte. Vemo-los a fazer castings, a serem caracterizados, comentando os factos e as memórias, a dada altura refletindo sobre o que este filme, passados 40 anos sobre o que aconteceu, poderia danificar as suas imagens atuais. O melhor do filme é mesmo o contraste entre a crueza da história que se conta e o registo (inclusivamente sob uma fotografia distinta, mais luminosa e cromaticamente exuberante) dos sonhos do velho Anwar. Poderoso é depois o modo como o filme documenta a sua tomada de consciência do que fez. Que acontece ao ver brutos do que ia sendo filmado. E, mais ainda, quando numa das cenas lhe cabe desempenhar o papel de uma das suas vítimas.
O filme desencadeou várias reações distintas e colheu prémios e mais prémios. A história do cinema documental passa decididamente por aqui.