É um dos grandes fenómenos da mais recente produção de Hollywood: o segundo episódio de “The Hunger Games” traça o retrato inquietante de um futuro dominado pela televisão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Novembro), com o título 'A saga cruel de um futuro subjugado pela “reality TV”'.
Quando vemos Jennifer Lawrence, com o seu arco e flechas, em The Hunger Games: em Chamas, não podemos deixar de pensar na importância das aventuras em todas as estratégias do moderno cinema made in USA. Pode mesmo dizer-se que, desde os tempos heróicos da epopeia de A Guerra das Estrelas (o primeiro filme é de 1977) ou das aventuras de Indiana Jones (iniciadas em 1981, com Os Salteadores da Arca Perdida), a grande produção americana vive condicionada por um modelo narrativo e comercial: a saga juvenil.
Depois de Harry Potter (oito filmes no período 2001/2011) e Twilight (cinco filmes, 2008/2012), The Hunger Games/Os Jogos da Fome é o mais recente trunfo desse processo industrial e, não há dúvida, com apreciáveis resultados comerciais: o segundo título da saga, The Hunger Games: Em Chamas, dirigido por Francis Lawrence, bateu recordes de bilheteira na estreia nos EUA, conseguindo a melhor abertura de sempre (158 milhões de dólares) para um título lançado em Novembro.
Também neste caso estamos perante a adaptação de uma saga literária de grande sucesso: a trilogia The Hunger Games, escrita pela americana Suzanne Collins [foto], projecta os seus jovens heróis no futuro pós-apocalíptico de Panem. Como muitas aventuras enraizadas na tradição da ficção científica, também esta aposta na combinação de índices futuristas com elementos próximos dos actuais modos de vida e comunicação.
Tudo se passa num universo em que os mais poderosos dominam uma tecnologia altamente sofisticada; ao mesmo tempo, desde os cenários urbanos à televisão, proliferam sinais que sentimos perturbantemente próximos da nossa existência. O espaço televisivo é, nesse aspecto, essencial: o governo ditatorial de Panem, concentrado no temido “Capitólio”, utiliza os jogos (que dão o título à saga) como tema de um “reality show” cuja pompa tenta disfarçar as condições de miséria em que vive a maioria da população.
Tal conceito, de uma só vez espectacular e político, envolve uma imensa crueldade, já que os jogos são mesmo de vida ou morte: para a disputa dos “Hunger Games”, todos os anos são seleccionados um rapaz e uma rapariga (entre os 12 e os 18 anos) de cada um dos doze Distritos da nação – o seu combate é de pura sobrevivência, vencendo os que conseguirem eliminar os outros concorrentes.
Não será necessário qualquer caução “universitária” para detectar a perturbação que os livros de Collins, e os filmes já produzidos, lançam no nosso imaginário mediático. Sem complexos moralistas, The Hunger Games lembra que os efeitos de espectáculo dos “reality shows” podem articular-se com mecanismos de gestão política, favorecendo um estado de coisas em que grandes sectores da população são distraídos do essencial através de um “dramatismo” artificioso – afinal, neste futuro assombrado, os jovens que disputam os jogos morrem mesmo (e não exactamente de forma romântica).
A saga The Hunger Games poderá dar entrada na história do cinema com um peso semelhante às aventuras de ficção científica que, nos anos 50, reflectiram o medo da energia atómica e também as inquietações geradas pela Guerra Fria – lembremos os casos emblemáticos de Invasion of the Body Snatchers (Don Siegel, 1956), em que a Terra é invadida por “aliens” que matam os humanos, renascendo com o mesmo aspecto das suas vítimas, ou The Incredible Shrinking Man (Jack Arnold, 1957), centrado num homem que, na sequência da exposição a ondas radioactivas, começa a diminuir regularmente de tamanho.
Enfim, Hollywood consegue o melhor de dois mundos, já que The Hunger Games representa também a consagração de uma nova estrela: Jennifer Lawrence. Interpretando a personagem de Katniss Evergreen, neste segundo episódio promovida à condição de líder da rebelião que se adivinha, Lawrence confirma a versatilidade que já lhe permitiu protagonizar Despojos de Inverno, um drama de produção independente, ou a comédia dramática Guia para um Final Feliz (que lhe valeu, no passado mês de Fevereiro, um Oscar de melhor actriz). Entretanto, a terceira parte de The Hunger Games, intitulada Mockingjay, dará origem a dois filmes, com lançamentos previstos, respectivamente, para 21 de Novembro de 2014 e 20 de Novembro de 2015.