Os anos 60 do cinema americano definem uma fascinante paisagem de contrastes, cumplicidades e rupturas: a reposição de 2001: Odisseia no Espaço é um bom pretexto para uma breve digressão pelas suas memórias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Dezembro), com o título 'Memórias americanas dos anos 60'.
O impacto interessante, mas moderado, da reposição (agora em cópia digital) de 2001: Odisseia no Espaço, a obra-prima das aventuras galácticas que Stanley Kubrick lançou em 1968, permite-nos perceber que a reconstituição das memórias cinéfilas está longe de ser uma prioridade do espectador médio. Como definir o espectador médio? Pois bem, será aquele a quem a escola não concedeu formação específica para lidar com o mundo das imagens (cinematográficas e televisivas), vivendo há quase quarenta anos subjugado por um sistema estético e narrativo cujo padrão dominante está na formatação telenovelesca. Dito de outro modo: para quem foi habituado a encarar a telenovela como uma espécie de modelo natural e inquestionável, é normal que a ousadia e a inteligência de Kubrick sejam questões inexistentes.
Bem sei que lembrar tais factores conjunturais raras vezes produz mais do que um insulto disfarçado de pedagogia: o crítico seria aquele que tenta impor a sua visão “especializada” a todos os outros... Haverá críticos suficientemente pueris para alimentar tal arrogância e não sou eu que o vou desmentir. Interessa-me apenas relembrar que a teia das grandes linhas de força da história do cinema podia e devia ser uma matéria de conhecimento tão universal como a carreira da selecção portuguesa de futebol no Mundial de 1966 (de que, já agora, o crítico que subscreve este texto possui calorosas e apaixonantes memórias).
Aliás, creio que é pertinente recordar que a própria visão “tecnicista” de 2001, além de passar ao lado da riqueza temática e argumentativa do filme, ignora a fascinante complexidade do cinema americano de finais da década de 60. Claro que o trabalho de Kubrick representou um momento charneira na evolução dos chamados “efeitos especiais”. Em todo o caso, o seu filme não pode ser dissociado de toda uma dinâmica, directa ou indirectamente ligada à reconversão dos estúdios clássicos de Hollywood, através da qual foram lançadas algumas bases das “novas vagas” da época, sem esquecer o papel primordial de tudo o que estava a acontecer em contexto europeu (ironicamente, 2001 foi, no essencial, rodado em estúdios de Londres).
Assim, no mesmo ano de 1968 surgiram, por exemplo, Bullitt, de Peter Yates, que rasgou caminhos temáticos e técnicos para um novo modelo de policial, ou Faces, de John Cassavetes, exemplo modelar de um cinema construído na intimidade dos actores. Um ano antes, Bonnie e Clyde, de Arthur Penn, desafiara toda a mitologia do género “noir”, além do mais tendo sido um exemplo pioneiro do apoio de um estúdio (Warner) sancionado pelo envolvimento de um dos actores (Warren Beatty) na próprio produção; um ano mais tarde, Easy Rider, de Dennis Hopper, definiria os princípios de um novo conceito de produção independente. Revisitar 2001 é também voltar a sentir a espantosa energia criativa dessa época.