quarta-feira, novembro 13, 2013

LEFFEST 2013 (dia 6)


Chegou de Cannes com a distinção da Queer Palm, o prémio que distingue o melhor filme de temática queer apresentado no festival. A distinção foi então entregue ao realizador Alain Guiraudie pelo português João Pedro Rodrigues, que era este ano o presidente deste mesmo júri. E na noite de segunda-feira o Espaço Nimas voltou a ver os dois realizadores juntos (ver foto mais abaixo) num mesmo espaço para discutir o filme O Desconhecido do Lago, que na próxima semana terá estreia nas salas portuguesas.

Um dos filmes mais intensos e únicos que vamos ver este ano, O Desconhecido do Lago coloca o nosso olhar em volta de um lago (as suas águas, praias nas margens e bosques nas redondezas), nunca dali saindo, confinando-nos assim a um universo fechado, mesmo a céu aberto. Local de cruising para homens, onde olhares se cruzam e o sexo se procura (muitas vezes anónimo), o lago junta personagens que vamos acompanhando, entre três que se destacam expressando-se visões claramente distintas do que é tanto o amor como o desejo.

A trama conduz-nos contudo a um incidente. Uma morte, a que um dos protagonistas assiste, a pulsão de desejo (e amor) que sente deixando-o naturalmente assombrado, mas incapaz de resistir à atração que o domina. É em volta do lago, em finais de tarde de verão – sob uma fotografia solarenga e quente – que continuamos assim a acompanhar os olhares, os corpos, as ligações, os desejos, os receios, as grandes questões que lançam. Guiraudie (como explicou no Nimas) fez questão de enfrentar também com este filme o que vê como uma das grandes elipses do cinema: o sexo. Convenhamos que o faz de forma mais consequente que em muitos outros recentes exemplos de cinema “explícito”.
Foto: LEFFEST

Vidas em torno de uma auto-estrada

Foto: LEFFEST

É uma auto-estrada, e define um perímetro fechado de 68,2 quilómetros em volta da cidade de Roma, definindo uma espécie de anel. Chama-se Grande Raccordo Anulare, é habitualmente referida pelas iniciais GRA e serviu de terreno onde o realizador italiano Gianfranco Rosi encontrou as figuras e os lugares que levou para Sacro Gra, filme documental que este ano venceu o Leão de Ouro do festival de Veneza e que teve antestreia nacional integrado na edição deste ano do Lisbon & Estoril Film Festival, com a presença do próprio realizador.

A inesperada vitória em Veneza com um documentário foi, como reconheceu Gianfranco Rosi, uma “surpresa”, acrescentando que, mesmo assim, “ver o filme a ser selecionado para a competição” tinha já sido para si “como um prémio”. Ao longo de “anos de trabalho”, já que antes fez filmes como Boatman (1993), Below Sea Level (2008) ou El Sicario (2010), Rosi sempre acreditou “que se devia ultrapassar um pouco esta barreira” entre a ficção e o cinema documental. Ele mesmo reconhece que há diferenças entre ambos: “a maneira de trabalhar, o modo como nos relacionamos com as personagens e com a história”. Mas sublinha que hoje “há um tipo de documentário, que está a crescer um pouco por todo o lado, em que essas fronteiras de diluem”. Aí “as divisões e as convenções ficam menos claras e então surge cinema”. E defende que “o dever do cinema é o de olhar sobre a realidade e, depois, procurar uma linguagem para contar a história”.

Morando fora de Itália quase toda a sua vida, Rosi não tinha por isso grande familiaridade com a auto-estrada da qual nasceu a ideia para este seu novo filme. A GRA“desenha precisamente 360 graus em torno da cidade, foi construída nos anos 60 e é como um muro”, descreve. “E hoje, na parte externa do GRA vivem cerca de três milhões de pessoas... É a nova Via Venetto”, graceja.

Durante dois anos andou por aquela estrada, conhecendo pessoas, as suas histórias, com elas ganhando familiaridade, acabando por escolher cinco histórias, que são as que mais vezes visitamos no decurso do filme. “Os meus filmes partem sempre de encontros, de relações fortes que se vão estabelecendo com as pessoas”, explica Rosi. Antes de filmar “há já uma relação íntima com as pessoas” e por essa altura já as conhece a ponto de saber como vai “poder contar a história”. Neste filme queria “apenas captar um fragmento das suas vidas, apenas momentos”. E acrescenta que cada uma daquelas figuras daria um filme potencial”. Optou todavia por escolher só alguns momentos que vê como a “condensações de coisas que aconteceram antes” e que escolheu quando chegou à mesa de montagem.

Apesar de rodado em torno de Roma, traduzindo assim uma realidade italiana do presente, Sacro Gra reflete “também uma universalidade”. Rosi sublinha que “há elementos que vão para lá da essência italiana das coisas”. E conta que estas figuras que filma “são pessoas que não se estão a queixar”. De resto, “não queria fazer um filme social e político, pelo descreve Sacro Gra como “um ato de amor”. É, como descreve, “um filme positivo, num local que perdeu completamente a sua identidade cultural, que é o que aconteceu em Itália nos últimos 20 a 40 anos”. Não quer dizer “com Berlusconi, mas de certa maneira ele está lá no filme”, ressalva com um sorriso. O seu desafio era sobretudo “o de encontrar pessoas com identidades fortes”. Mas “quando acaba o filme não sabemos nada deles, mas sim aqueles momentos, que são os que ficam connosco”, explica.

Este foi o primeiro filme que rodou em Itália. “Agora preciso de encontrar uma história num outro lugar”, confessa.

PS. Este texto, resultado de uma entrevista com o realizador, foi originalmente publicado na edição de 12 de novembro do DN com o título 'Em busca das histórias que vivem à volta de uma estrada'