quarta-feira, novembro 27, 2013

Em conversa: Sérgio Godinho (2 / 2)

Foto: José Mendes / cedida pela Universal

Continuamos a publicação da versão integral de uma entrevista com Sérgio Godinho a propósito do lançamento, esta semana, do disco Caríssimas Canções. A entrevista serviu de base ao artigo ‘As Canções dos Outros Segundo Sérgio Godinho’, publicado na edição de 24 de novembro do DN.

Quando sentiu que as canções que estavam a trabalhar para os espetáculos começavam a ser suas?
Essa apropriação tem que existir e foi um dos grandes gozos disto. Pisar territórios estranhos e fazê-los nossos. Na verdade muitas destas canções já tinha cantado para mim, nem que na casa de banho. Muitas estavam na minha memória, como a do Bob Dylan ou o Volver a Los 17 da Violeta Parra, que venero e que ouvi pela primeira vez pelo Milton e a Mercedes Sosa. É uma canção pujante de lirismo. Estão na minha memória ativa. No espetáculos havia outras em que tinha de ler as letras, como o caso da Geni e o Zepelim, que é muito intrincada. É uma canção genial, uma das mais violentas que conheço. A maneira como a narrativa se resolve é terrível...

Podia ser uma personagem das suas canções...
Sim... Já me perguntaram, sobre estas canções, de quais tenho inveja de não ter sido eu a compor: acho que gostava de ter composto esta. Mas desde cedo senti que as canções me pertenciam. A escolha das canções que pus no palco também tinha a ver com o sentir que as podia cantar. O Le Pornographe do Brassens seria muito especifica na voz dele. As pessoas estão habituadas a associar a minha voz com o meu universo criativo, mas de facto sinto-me bem dentro de outros géneros. O Rapaz da Camisola Verde é um fado que tratamos quase como uma marcha, é excelente. As pessoas diziam “o quê? Pedro Homem de Melo, Frei Hermano da Câmara?... Mas depois aquilo flui de uma maneira magnífica. Houve aqui coisas leves e coisas pesadas. Houve retratos. O Conversa de Botequim de Noel Rosa é um retrato primoroso do imaginário carioca (foi escrita nos anos 30). O Rosa é um bocado o pai do Chico Buarque e de muitos outros.

Há aqui nomes que o acompanham como referência estrutural desde sempre...
Estas canções têm muito lastro, já vivem há muito tempo comigo. E no concerto tinha também quatro canções minhas que eram confrontos com outros universos... Tinha o Dias Consecutivos, que fiz com o Bernardo Sassetti. E até acabava no Acesso Bloqueado, para voltar a Portugal e ao momento presente. Mas no disco não fazia sentido, que o seu propósito era o de mostrar material alheio. A única canção que está é a que abre o CD, que é o Última Sessão. Algumas não ficaram porque nenhum dos takes da Casa da Música ou CCB eram completamente satisfatórios para todos e não queríamos estar a fazer overdubs, queríamos que a coisa fosse assim mesmo autêntica.

Sentiu um reencontro c trabalho que vez em rádio, que tinha também a ver com a recolha de canções?
Com o Baú e os Reis do Vinil. Não anda longe, de facto. Faz parte dessa minha memória ativa e do prazer de partilhar. Esses programas de rádio são avôs deste projeto. Não tinha pensado nisso mas faz sentido. Nessa altura já explicava as origens das canções, as histórias à sua volta, as idiossincrasias. Foi um percursor deste processo. Na pesquisa que, semana a semana, fui fazendo para o livro ia descobrindo coisas que eu nem sabia, ou que já não ouvia há muito tempo.

Como fazia a investigação?
Internet, e às vezes livros... E havia coisas que já sabia e queria confirmar. Num ou outro até de viva voz, como o caso do Vendaval. Quem me contou a origem da canção foi o David Ferreira, que é uma enciclopédia. Mas são aventuras quem me descentram das minhas canções e do meu universo. Mas, e como dizia nos concertos, nem andei muito longe de Portugal. O Les Vieux, no fim de contas, fala da solidão dos velhos que neste país são confrontados com todos estes salários, estas pensões miseráveis que estão a ser reduzidas. No fim não estamos muito longe. Estamos sempre a falar, de maneiras diversas, da sensibilidade das pessoas, da realidade, do mais político, do mais social, do mais íntimo.

Sendo que é n'Os vampiros que explicita mais claramente essa ponte com o presente.
Sim. É uma metáfora muito poderosa.

(continua)