Como a herança de um mito se reflecte na vida de um dos seus imitadores. Ou ainda: a reinvenção da figura de Elvis Presley em tom argentino — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Setembro), com o título 'Realismo em tom argentino'.
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Até que ponto a relação entre o cidadão comum e as figuras da mitologia do espectáculo constitui um tema peculiar das sociedades da América latina? Ou, pelo menos, do seu imaginário cinematográfico? A pergunta poderá justificar-se a partir de dois filmes bem diferentes, unidos pelo assombramento dos respectivos anti-heróis. Assim, Tony Manero (2008), do chileno Pablo Larraín, filmava a ditadura de Pinochet a partir da experiência profundamente perturbante de um imitador da personagem de John Travolta no filme Febre de Sábado à Noite (1977); agora, deparamos com O Último Elvis (2012), do argentino Armando Bo, em que tudo acontece em torno de um imitador profissional de Elvis Presley, cada vez mais “contaminado” pela própria figura imitada.
O que une Tony Manero e O Último Elvis não é tanto o fascínio pelas luzes do espectáculo, como a pulsão suicida das suas figuras centrais. Tal pulsão encaminha ambos os filmes para um delírio paradoxal, em que a abstracção da fábula social não impede, antes parece favorecer, a consolidação de um olhar visceralmente realista.
De onde provém, então, esse empenho realista? Que faz com que, num tempo de exaltação do cinema de “efeitos especiais”, haja tantos exemplos, europeus e americanos, de filmes que não abdicam de uma fundamental proximidade com os corpos e os gestos, ou seja, o factor humano? Há uma possível resposta global: o cinema reage às ilusões do espontaneísmo televisivo, insistindo na necessidade de compreender uma determinada realidade para além dos mais correntes efeitos de “reportagem”. No caso do protagonista de O Último Elvis, não podemos deixar de reconhecer que, em última instância, o filme desenha um círculo e devolve o próprio Elvis Presley à condição de figura eminentemente trágica.