Estreado em 2012, em Cannes, Uma Família Respeitável, de Massoud Bakhshi é mais uma revelação do cinema iraniano — estes textos foram publicados no Diário de Notícias (2 Agosto), com os títulos de 'Filme iraniano encena drama social contemporâneo' e 'O real é uma “coisa” instável', respectivamente.
Em 1997, o iraniano Abbas Kiarostami arrebatou a Palma de Ouro de Cannes, com O Sabor da Cereja (ex-aequo com A Enguia, do japonês Shohei Imamura). Pode dizer-se que, desde então, a produção cinematográfica do Irão nunca deixou de marcar presença na linha da frente dos grandes festivais internacionais (por vezes, é um facto, através de filmes que não são mostrados no seu próprio país).
Nomes como Jafar Panahi, Mohsen Makhmalbaf ou Bahman Ghobadi passaram a fazer parte da nossa visão de uma sociedade em que, para além das muitas (por vezes impenetráveis) nuances culturais, não podemos deixar de contemplar a dimensão universal de temas como as atribulações familiares ou o conflito entre o indivíduo e o Estado.
É, precisamente, isso que acontece com Uma Família Respeitável, primeira longa-metragem de ficção de Massoud Bakhshi (ele que, desde finais da década de 90, desenvolveu uma actividade regular como documentarista). No seu centro está Arash (Babak Amidian), um professor que tem vivido no Ocidente; ao regressar para dar aulas em Shiraz (uma das maiores cidades do país), vê-se envolvido num drama inesperado: por um lado, as suas aulas são consideradas “inadequadas”; por outro lado, a herança deixada pelo pai atrai uma rede de corrupção a que, afinal, a própria família parece não ser estranha…
Com a sua difusão interdita no Irão, Uma Família Respeitável não tem deixado de cumprir um périplo internacional que começou, em 2012, no Festival de Cannes (Quinzena dos Realizadores). O maior trunfo do filme reside, sem dúvida, na imediata relação de empatia que estabelecemos com a personagem de Arash. Ele é, afinal, alguém que, ao regressar, não pode deixar de sentir a estranheza, por vezes a agressividade, de um universo que, em muitos aspectos, o rejeita – há mesmo uma cena em que os responsáveis da escola se mostram “escandalizados” pelo facto de ele ter mostrado um filme como elemento de informação e apoio pedagógico… Isto sem esquecermos que o jogo de interesses em torno do dinheiro deixado pelo pai envolve perversas cumplicidades entre alguns familiares e a burocracia estatal.
Além do mais, é significativo que o destino de Arash se cruze com as memórias da guerra Irão-Iraque (1980-88). Para a sua geração – afinal, a do próprio realizador –, importa contrariar o silêncio que tende a abater-se sobre os muitos dramas que essas memórias envolvem. Nesta perspectiva, pode dizer-se que Uma Família Respeitável ilustra um princípio fundamental: compreender o presente é também elaborar a arqueologia do passado.
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Somos envolvidos nas emoções de Uma Família Respeitável, de Massoud Bakhshi, através de uma lógica mais ou menos policial. A cena de abertura mostra-nos alguém que entra num taxi, a caminho do aeroporto, acabando por ser atacado de forma brutal… Em boa verdade, não vemos a personagem central, já que toda a cena é filmada em planos subjectivos; mais à frente vamos compreender que a construção do filme não é linear, correspondendo aquilo que acontece no taxi a uma situação posterior aos acontecimentos que, depois, nos são apresentados.
Não se trata, entenda-se, uma mera pirueta formal. Para Bakhshi [foto] é importante fazer passar a sensação de que a odisseia do professor que regressa ao Irão envolve um leque de tensões que, obviamente, o próprio não controla: por um lado, a história da sua família está minada de rivalidades e traições que remetem para um passado mais ou menos distante; por outro lado, nada do que acontece pode ser separado de uma dinâmica social em que a singularidade individual não é um valor necessariamente reconhecido por todos.
Podemos apostar que o efeito de tudo isto não será estranho à experiência de Bakhshi como documentarista: ele consegue envolver-nos através da verdade muito física das personagens e dos lugares, quase como se estivesse a fazer uma reportagem a correr “atrás dos acontecimentos”; ao mesmo tempo, não podemos deixar de participar da estranheza do protagonista, sentindo uma distância incómoda em relação a pessoas ou eventos que deveriam ser naturais e acolhedores. Nesta perspectiva, não será abusivo considerar que a lição do grande mestre do cinema iraniano, Abbas Kiarostami, está bem presente: o real é essa “coisa” instável que se joga entre uma transparência natural e o assombramento mais inclassificável.