Bare Room, de Joey Izzo |
Para além de três magníficos concertos, John Zorn esteve no Jazz em Agosto também através do cinema; não apenas das suas bandas sonoras, mas também numa relação íntima com a gestação das formas cinematográficas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Agosto), com o título 'John Zorn no nosso Agosto'.
No excelente programa da 30ª edição do Jazz em Agosto (a decorrer até ao dia 11), o nome do novaiorquino John Zorn emerge como fundamental destaque. Pela presença em três concertos, mas também porque o seu trabalho continuar a ser indissociável de uma convivência multiforme com as imagens, em particular as imagens cinematográficas. Mais do que isso: pode dizer-se que, a par de cineastas como Jean-Luc Godard ou Peter Greenaway, Zorn é um dos criadores contemporâneos que mais longe tem levado as relações música/cinema, não apenas pelas bandas sonoras que tem composto, mas sobretudo por uma lógica de trabalho em que as imagens e os sons surgem como derivações cúmplices da mesma vontade de desafiar as linguagens correntes, os seus princípios informativos e efeitos simbólicos.
O ciclo de filmes ligados a John Zorn, integrado no Jazz em Agosto (Fundação Gulbenkian: Sala Polivalente do Centro de Arte Moderna), é um exemplo precioso dessa capacidade de questionar, não apenas as imagens enquanto objectos de significação, mas também as ligações resultantes das suas diversas formas de organização e montagem. São quatro curtas-metragens nascidas de uma série de experiências (Theatre of Musical Optics) desenvolvidas por Zorn ao longo dos anos, para audiências extremamente reduzidas. Como ele explica num texto redigido para a passagem destes mesmos filmes, em 2011, no New York Film Festival, o processo, mais ou menos secreto e esotérico, deu origem a uma espécie de base de dados visual que, depois, desembocou nestes filmes dirigidos por Lewis Klahr (Well Then There Now), Joey Izzo (Bare Room), Gobolux (15 Scenes: 254 Shots) e Henry Mills (Arcana), com músicas assinadas por vários autores, incluindo Zorn.
Uma sugestão possível sobre a dinâmica interna dos filmes poderá vir da memória de um teledisco como Hallo Spaceboy (1996), de David Bowie, dirigido por David Mallet. Assim, trata-se de mobilizar as mais variadas imagens da cultura popular – desde os clássicos do cinema à publicidade – para criar um labirinto de referências em que, no limite, somos confrontados com as muitas possibilidades em aberto na relação entre o que se vê e o que se ouve, muito para além de qualquer sincronismo obrigatório.
Mesmo não esquecendo as óbvias diferenças, não estamos longe da atitude desse admirável cineasta belga que é Nicolas Provost (cuja obra tem sido divulgada entre nós pelo festival de curtas-metragens de Vila do Conde): a reconversão das relações imagem/som pode ser um método artístico e pedagógico de resistir ao determinismo que, todos os dias, domina o espaço da “comunicação” televisiva.
Apetece dizer que Zorn, compondo música ou inventando espaços para a expressão audiovisual, é alguém que nos ensina a relativizar os modos de ver e as leis da escuta. Nos dias que correm, essa é também a mais bela forma de fazer política.
Apetece dizer que Zorn, compondo música ou inventando espaços para a expressão audiovisual, é alguém que nos ensina a relativizar os modos de ver e as leis da escuta. Nos dias que correm, essa é também a mais bela forma de fazer política.