Um americano em Berlim — eis a base de produção do mais recente filme de Brian De Palma. Chama-se Paixão e confirma a sua invulgar capacidade para trabalhar as sedutoras ambiguidades da imagem cinematográfica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Julho), com o título 'A paixão cinéfila segundo Brian De Palma'.
O nome de Brian De Palma é um dos símbolos mais fortes dos chamados “movie brats”, de Hollywood. Incluindo Robert Altman, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Michael Cimino e Peter Bogdanovich, o conjunto do seu trabalho marcou de forma indelével a produção americana de finais dos anos 60 e, sobretudo, da década de 70: num certo sentido, eles realizaram dezenas de filmes de espírito independente no interior dos grandes estúdios. Ironicamente, De Palma continua a fazer tais filmes mas, por vezes, passando pela Europa: o seu título mais recente, Paixão (em exibição), foi em grande parte rodado em Berlim, resultando de uma coprodução entre entidades francesas e alemãs.
Paixão tem, aliás, como ponto de partida o argumento de um filme francês, Crime d’Amour (2010), o derradeiro dirigido por Alain Corneau. Responsável também pela adaptação, De Palma deslocou a acção de uma firma internacional sediada em Paris para uma agência de publicidade de Berlim, mas conservou as ambivalências das relações das duas personagens centrais. Tudo se passa, assim, entre uma directora executiva e a sua assistente, com a primeira a assumir a paternidade de ideias criativas que, na verdade, são da segunda. No filme de Corneau, as protagonistas eram Kristin Scott Thomas e Ludivine Sagnier; agora, sob a direcção de De Palma, encontramos Rachel McAdams [foto] e Noomi Rapace.
Encontramos aqui evidentes paralelismos com outros títulos da filmografia do realizador, desde Vestida para Matar (1980) até Mulher Fatal (2002), este, curiosamente, também uma produção de raiz europeia. De Palma parte de uma situação dramática que, a pouco e pouco, vai adquirindo perturbantes componentes policiais para, enfim, desembocar num “thriller” em que a sedução e a traição se exprimem através de elaborados sinais eróticos. Ele é, afinal, um verdadeiro cinéfilo, discípulo de Alfred Hitchcock, não porque o copie de forma automática, antes porque explora a sua arte de encenação da inocência e da culpa como uma via de revelação dos mecanismos do desejo. Em última instância, também para De Palma, o cinema é um infinito jogo de máscaras.
Estreado no Festival de Veneza de 2012, o filme tem cumprido, para já, uma carreira exclusivamente europeia, sem dúvida reflectindo a dificuldade de difusão nos EUA com que se confrontam alguns autores emblemáticos das últimas décadas do cinema de Hollywood (Coppola é outro dos “marginalizados”). Apesar dos nomes das duas actrizes principais, Paixão só chegará às salas americanas em Agosto, prevendo-se um lançamento discreto, bem diferente dos “blockbusters” de Verão.