PAUL KLEE O Peixe Dourado 1925 |
I. Há qualquer coisa de involuntariamente irónico no modo como António José Seguro apresentou o seu balanço das conversações falhadas entre o Partido Socialista e os partidos do Governo: "PSD e CDS inviabilizaram acordo de salvação nacional". Dir-se-ia que, a pretexto da urgência do momento, se resume assim o capítulo mais longo da história da democracia portuguesa. O seu tema central: a incapacidade de constituir um espaço "central" de permanente diálogo político. A sua cronologia: começa com o PREC (1974-76) e persiste como um assombramento social de que a utopia comunista continua a ser o esforçado ponto de fuga ideológico, como um zombie que não pára de correr em direcção aos amanhãs que cantam. Conforme o nosso sentimento, desilusão ou raiva, podemos "culpar" PS, PSD ou CDS pelo triste impasse a que chegámos. Seja como for, na prática, a 19 de Julho de 2013, Seguro inaugurou o PREC 2.
II. Claro que se tornou virtualmente impossível pensar tal dinâmica da (e na) sociedade portuguesa. Desde logo, porque qualquer reflexão como a que ficou condensada no parágrafo anterior tende a atrair a agitação pueril das vozes mais ruidosas, devidamente ampliadas pelo aparelho televisivo: tudo isso seria apenas uma tentativa de branquear os efeitos da governação PSD-CDS e, depois, uma forma de escamotear as dificuldades muito reais que afectam a maioria da população portuguesa. Nada a fazer: na nossa sociedade da (des)informação, a ética do pensamento é todos os dias vencida pela estética do grito.
III. Ao contrário do PREC original, o PREC 2 vai ser, por certo, de uma confrangedora pobreza ideológica. Em primeiro lugar, porque o seu símbolo nuclear, o Partido Comunista Português, só pode confirmar essa passagem da "tragédia" para a "farsa", para a qual Karl Marx nos avisou há 161 anos (O 18 de Brumário de Luís Napoleão): de organização empenhada em dominar o aparelho estatal (tema central do PREC, hélas!) até à condição de pregador quotidiano do espaço televisivo, devidamente acolitado pelos seus clones pós-modernos. Depois, porque, de facto, a maioria dos dirigentes dos três partidos do arco da governação (expressão há muito encerrada no seu genial idealismo) continua a dar provas de pensar muito pouco nos dramas do país, preferindo esgotar-se (e esgotar-nos) no interminável bailado de reuniões para coisa nenhuma.
IV. Mesmo que possamos não alimentar especial admiração pelo aparato de pensamento do actual Presidente da República (é o meu caso), importa reconhecer que, para já (escrevo às 13h00 do dia 20 de Julho), Cavaco Silva se veio colocar na única posição realmente construtiva que o momento pode suscitar: a de lembrar que, muito para além das "culpas" com que possamos apaziguar o nosso medo (afinal de contas, até mesmo os comentadores de futebol menosprezam o prazer do jogo, esforçando-se por esclarecer onde está o "culpado" de cada golo...), o agravamento das clivagens político-partidárias só pode complicar ainda mais o nosso presente.
V. O PREC 2 será, sobretudo, um exuberante espectáculo televisivo. Hoje em dia, aliás, o único ponto de confluência absoluta de todos os protagonistas políticos pode resumir-se na mesma pergunta: "O que é que temos para os noticiários das oito da noite?" E relançará um desafio há muito decisivo na nossa dinâmica colectiva. A saber: como encontrar as bases de uma sociedade de diálogo numa Europa que, além do mais, globalmente, tão mal tem sabido trabalhar a utopia da sua própria unidade? Para o melhor ou para o pior, na sociedade portuguesa, estes dramas voltam a atribuir um papel decisivo às cabeças pensantes do Partido Socialista.