O Festival de Cannes é também um período tradicionalmente favorável a alguma actividade cinéfila da edição livreira. Este ano, apesar de tudo, há ainda algumas memórias a reter — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Junho), com o título 'A nostalgia segundo Sam Shaw'.
Em Cannes, durante o festival de cinema (15/26 Maio), os destaques das livrarias não tinham necessariamente conotações cinéfilas. Durante alguns dias, numa transversal da rue d’Antibes, o arranjo de uma montra de livros envolvia mesmo um deprimente simbolismo: um álbum sobre a história do festival, que nem sequer era uma novidade, surgia literalmente rodeado por exemplares da mais recente proeza de Dan Brown, Inferno, a provar que a ubiquidade do marketing se transformou na lei mais forte do mercado.
Entre as edições expostas de forma mais ou menos discreta, era possível encontrar dois dos mais recentes mini-álbuns com chancela da associação Repórteres sem Fronteiras (organização não governamental para defesa da liberdade de informação). Um deles, dedicado ao italiano Paolo Pellegrin (n. 1964), destaca a obra de um fotógrafo directamente envolvido com temas sociais e políticos da nossa actualidade: Pellegrin tem sido testemunha de vários cenários bélicos, colaborando actualmente no projecto “Postcards from America”, visando em particular as tensões na fronteira EUA/México (o livro editado contém, justamente, exemplos deste trabalho). Na outra edição, é possível redescobrir uma magnífica selecção do espólio do americano Sam Shaw (1912-1999), notável fotógrafo de Hollywood que passou por Portugal, em 1992, quando foi homenageado pelo Festival de Tróia.
Shaw tem como assinatura principal da sua obra uma espantosa colecção de fotografias de Marilyn Monroe, a começar pela célebre série com o vestido levantado pelo vento do metro de Nova Iorque, numa cena mítica do filme O Pecado Mora ao Lado (1955), de Billy Wilder. Para além de Marilyn, Marlon Brando, Elizabeth Taylor, John Wayne, John Cassavetes e Ingrid Bergman são apenas alguns dos nomes que lhe permitiram construir um “portfolio” que permanece como um testemunho ímpar de cerca de três décadas da história do cinema americano.
Quanto mais o tempo passa, mais nítido se torna o lugar charneira de Shaw. Profissional de um tempo em que o imaginário dos “famosos” não tinha ainda a vulgaridade televisiva dos nosso dias, ele foi também um fotógrafo que se demarcou do clássico retrato de estúdio de Hollywood: há nele um paradoxal gosto de reportagem, alicerçado numa tocante intimidade com algumas das estrelas que fotografou, a começar por Marilyn e Cassavetes (de quem chegou a produzir alguns dos seus filmes como realizador).
Daí a emoção nostálgica gerada pelas imagens assinadas por Sam Shaw. Por um lado, as suas fotografias exibem uma naturalidade tocante, nascida de uma serena cumplicidade entre quem fotografa e quem é fotografado; por outro lado, o seu corpo de trabalho celebra a alegria de uma genuína cinefilia que rejeita a exploração obscena da privacidade, mesmo quando nasce de uma proximidade, física e simbólica, que não é estranha aos silêncios do amor.