domingo, junho 30, 2013

Richard Matheson nas televisões... onde?

Como é que, em muitos casos, a televisão se referiu ao falecimento do grande Richard Matheson... Aliás: referiu-se? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Junho), com o título 'Lembrando Richard Matheson'.

1. No dia 23 de Junho, em Los Angeles, faleceu o escritor e argumentista americano Richard Matheson – contava 87 anos. Para além de ser autor de vários títulos clássicos do fantástico e da ficção científica – um deles, I Am Legend, adaptado três vezes ao cinema (a última das quais em 2007, com Will Smith) –, Matheson tem o seu nome ligado a The Twilight Zone, uma das séries nucleares na história da televisão. Vale a pena recordar que, há poucas semanas, a Writers Guild of America (associação dos argumentistas americanos) estabeleceu a sua lista das melhores séries televisivas de sempre, surgindo The Twilight Zone em terceiro lugar, depois de Os Sopranos e Seinfeld. Matheson esteve particularmente activo no período original da série (1959-64), tendo escrito nada mais nada menos que dezasseis argumentos para episódios coordenados pelo seu criador, Rod Serling. A presença de Matheson na história da televisão envolve ainda, por exemplo, a adaptação do seu conto Duel, para um telefilme de 1971 dirigido por Steven Spielberg que, aliás, viria a ser o primeiro trabalho do futuro realizador de Os Salteadores da Arca Perdida a ter distribuição nas salas de cinema (entre nós lançado como Um Assassino pelas Costas). Entre os seus diversos contributos cinematográficos como argumentista incluem-se The Incredible Shrinking Man (1957), de Jack Arnold, e O Fosso e o Pêndulo (1961), de Roger Corman, este inspirado em Edgar Allan Poe.

2. Pois bem, importa formular a mais linear das perguntas: perante o falecimento de uma personalidade tão marcante na história e na mitologia da televisão, será que vimos e ouvimos o nome de Richard Matheson ser devidamente celebrado nos nosso pequenos ecrãs? A resposta é desgraçadamente negativa, já que, para além da exaltação histérica da “crise”, os arraiais de música pimba e as transferências do futebol dominam o pensamento (?) televisivo. Inútil recordar que Matheson é um nome que pertence à dimensão mais popular da televisão. Na prática, a ideologia televisiva dominante nem sequer cultiva a memória dos seus melhores.

"A Lista de Schindler" em Blu-ray (2/2)

Oskar Schindler interpretado por Liam Neeson
A edição em Blu-ray de A Lista de Schindler marca o reencontro com um momento central na obra e na dinâmica criativa de Steven Spielberg — este texto foi publicado no suplemento "QI", do Diário de Notícias (15 Junho), com o título 'O Holocausto nas fronteiras do realismo'.

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O interesse de Spielberg pelo livro de Thomas Keneally levou-o a sugerir aos estúdios da Universal a aquisição dos respectivos direitos para cinema. Inicialmente, não era sua intenção dirigir a adaptação, envolvendo-se apenas como produtor; o certo é que o conhecimento das mais diversas “teorias” que, ainda hoje, tentam negar o Holocausto, levou-o a decidir-se pela realização. Como está documentado nos extras da edição do filme em Blu-ray, tal processo conduziu Spielberg à criação, em 1994, da Fundação para a História Visual do Holocausto [ USA Shoah Foundation ], entidade vocacionada para a recolha, preservação e difusão de testemunhos e materiais de arquivo susceptíveis de ajudar as novas gerações a conhecer a Solução Final com que os nazis quiseram aniquilar o povo judeu (estranhamente, o disco que inclui esses extras é, não um Blu-ray, mas um DVD normal).
Há em A Lista de Schindler um princípio de realismo cuja pertinência estética importa, mais do que nunca, enfatizar. E não apenas por causa da fotografia a preto e branco. Acontece que todo o trabalho do director de fotografia Janusz Kaminski (3) foi conduzido por vectores de natureza documental. Assim, ao contrário dos seus filmes anteriores, onde sempre recorrera a planificações (“storyboards”) muito elaboradas, desta vez Spielberg deixou para o próprio momento da rodagem as decisões sobre enquadramentos e durações dos planos. Na prática, isso criou uma disponibilidade diferente para reagir aos estímulos visuais e também para trabalhar com os actores as nuances emocionais de cada cena.
No limite, podemos dizer que A Lista de Schindler desafia um dos mais perenes tabus do imaginário histórico ocidental. A saber: que o Holocausto, instaurando um horror na fronteira do indizível, seria “infilmável”. Entenda-se: impossível de trabalhar nos registos da ficção cinematográfica.
Ora, mesmo sem escamotear a complexidade das questões formuladas em torno da tradução cinematográfica do Holocausto (até porque se fundamentam num princípio de resistência à banalização do horror), importa também acrescentar que a “démarche” de A Lista de Schindler não é estranha a um impulso realista que, em boa verdade, marcou os aspectos mais nobres da tradição do filme de guerra. Spielberg arrisca mesmo na aplicação de princípios muito clássicos de caracterização psicológica, bem expressos nas múltiplas facetas de personagens como Schindler (Liam Neeson) ou Amon Göth (Ralph Fiennes), o oficial nazi que comanda o campo de concentração.
Em termos especificamente cinematográficos, talvez se possa dizer que A Lista de Schindler encerra, no plano simbólico, a história clássica de um género, o filme de guerra, ou, em rigor, do filme sobre a Segunda Guerra Mundial. Não admira que, mais tarde, ao dirigir O Resgate do Soldado Ryan (1998), sobre o desembarque das tropas aliadas na Normandia, a “mise en scène” de Spielberg viesse a reflectir uma espectacular reconversão do género e, afinal, a lógica de um novo realismo.

(3) JANUSZ KAMINSKI (n. 1959) – Director de fotografia polaco, é responsável pelas imagens de todos os filmes de Steven Spielberg, desde A Lista de Schindler até Lincoln (2012), tendo ganho dois Oscars (com A Lista de Schindler e O Resgate do Soldado Ryan). Fotografou também, por exemplo, Jerry Maguire (1996) e O Escafandro e a Borboleta (2007).

Lady Gaga na Gay Pride Parade

Foi em Nova Iorque, sexta-feira, 28 de Junho: na abertura da Gay Pride Parade, Lady Gaga fez um discurso emocionado e emocionante. E não apenas pelo modo como exprimiu toda uma política de solidariedade(s): "A nossa evolução como cidadãos LGBT continua a produzir mudança. E vemos que quanto mais somos capazes de dar a conhecer e partilhar as nossas vidas, mais nos aproximamos dos corações e pensamentos de outros americanos." A criadora de Born This Way soube também criar e partilhar um genuíno momento de star, interpretando o hino nacional americano [video] — com algumas derivações exemplares: "star-spangled banner” transformou-se em star-spangled flag of pride e “home of the brave” em home for the gays.

sábado, junho 29, 2013

Bert Stern (1929 - 2013)

BERT STERN
Marilyn Double X
1962
A sua célebre "Última Sessão" (The Last Sitting) com Marilyn Monroe garantiu-lhe um lugar mítico da história da fotografia: o americano Bert Stern faleceu no dia 26 de Junho, em Nova Iorque — contava 83 anos.
Stern em 2011, em Nova Iorque (Neilsen Barnard/Getty Images)
Entrou para o departamento de correio da revista Look, em 1945, curiosamente na mesma altura em que Stanley Kubrick aí começava a sua actividade como fotógrafo. Dez anos mais tarde, começou a trabalhar em publicidade, sendo a sua primeira encomenda uma campanha do vodka Smirnoff (protagonizada, entre outros, por Buster Keaton e Vincent Price). Foi responsável pelas imagens de Sue Lyon para a promoção de Lolita (1962), de Kubrick, construindo a pouco e pouco uma invulgar galeria de retratos de personalidades do período clássico de Hollywood, sobretudo actrizes, incluindo Audrey Hepburn, Elizabeth Taylor e Natalie Wood. No seu vasto portfolio surgem ainda, por exemplo, Louis Armstrong, Alain Delon, Brigitte Bardot, Twiggy, Madonna, Kate Moss, Kylie Minogue, Drew Barrymore e Lindsay Lohan (com quem "recriou" The Last Sitting).
Embora não sendo alheias aos códigos e à iconografia clássica do glamour, as fotografias de Stern possuem muitas vezes uma marca dúplice de intimidade e realismo, bem expressa nas mais de duas mil imagens de Marilyn ou ainda num retrato de Elizabeth Taylor, datado de 1962 — realizado alguns meses depois da actriz ter sido submetida a uma traqueotomia, o retrato exibe a cicatriz da intervenção cirúrgica, num misto de candura e ostentação, que em última instância reflecte a margem de confiança entre quem fotografa e quem está na fotografia.
BERT STERN
Elizabeth Taylor
1962
BERT STERN
Twiggy
1967
BERT STERN
Madonna
1985
Em 1958, em colaboração com Aram Avakian, Stern realizou o documentário Jazz on a Summer's Day, sobre o Festival de Jazz de Newport (com performances, entre outros, de Thelonious Monk, Sonny Stitt, Anita O'Day, Dinah Washington, Gerry Mulligan, Chuck Berry e Louis Armstrong). Em 2011, foi lançado o documentário biográfico de Shannah Laumeister, Bert Stern: Original Madman [trailer].


>>> Obituário no New York Times.

Richard Matheson (1926 - 2013)

Autor de clássicos da ficção científica como I Am Legend, o escritor e argumentista americano Richard Matheson faleceu no dia 23 de Junho, em Los Angeles — contava 87 anos.
Figura de culto do domínio do fantástico, Matheson tem também o seu trabalho ligado à série The Twilight Zone (1959-64), criada e apresentada por Rod Serling — escreveu 16 dos respectivos episódios, incluindo o célebre Nightmare at 20,000 Feet, com William Shatner e realização de Richard Donner. I Am Legend deu origem a três versões, a mais recente das quais, com Will Smith, foi lançada em 2007. The Shrinking Man (1956) é outro dos seus livros mais célebres, sobre um homem que, sob o efeito de uma radiação atómica, vai diminuindo de tamanho, tendo dado origem ao filme The Incredible Shrinking Man (1957), de Jack Arnold. Escreveu o conto Duel que adaptou para o telefilme homónimo (1971) de Steven Spielberg, estreado nas salas portuguesas como Um Assassino pelas Costas.

>>> Neste primeiro video, Richard Matheson apresenta-se como um "contador de histórias"; depois, podemos ver o genérico de The Twilight Zone (com a voz de Rod Serling) e os títulos de abertura de Duel.






>>> Obituário no New York Times.

"Marca": o jornalismo da vingança

1. Não, a palavra vingança não é metáfora. Está escrito com todas as letras no site do jornal Marca. Assim: "A hora de vingar o golo de Míchel". Qual é, então, a notícia? Aparentemente, será o facto de as selecções de futebol brasileira e espanhola irem jogar a final da Taça das Confederações (domingo, dia 30). Grande jogo em perspectiva, sem dúvida. Em todo o caso, no jornal Marca, parece haver quem não tenha especial empenho em promover o gosto do futebol, preferindo proclamar a hora da vingança... Uma tristeza jornalística que envolve um trágico esvaziamento moral do desporto. Ou seja: para antecipar o jogo, convoca-se um outro, realizado a 1 de Junho de 1986, durante a fase de grupos do Mundial do México!!!

2. E deixemo-nos de tretas filosóficas sobre a capacidade de, já nessa altura, as câmaras de televisão poderem vislumbrar com assinalável rigor alguns detalhes eventualmente vagos para o olhar humano... Claro que a bola rematada por Míchel entrou na baliza da equipa brasileira. Mas ninguém está a discutir isso. O que é incrível, e lamentável, é que 27 anos depois se faça jornalismo (?) evocando desta maneira um facto apenas sintomático do imponderável do futebol para sugerir e legitimar (!) uma vingança.

3. Quando se lembrarem de discutir a degradação de padrões de comportamento de alguns sectores do público, já agora não se esqueçam de considerar que há formas de jornalismo que, por certo, não invadem campos nem agridem árbitros, mas que contribuem activamente para construir uma imagem bélica do futebol — assim se vendem jornais e também o mais triste patriotismo.

Para descobrir Jenny Hval (1)

Um rápido bilhete de identidade: norueguesa, à beira de completar 33 anos (nasceu em Oslo, a 11 de Julho de 1980), Jerry Hval respondeu durante alguns anos pelo nome artístico de Rockettothesky. Como tal, gravou dois álbuns: To Sing You Apple Trees (2006) e Medea (2008). Depois, já em nome próprio, lançou Viscera (2011) e, há poucas semanas, Innocence is Kinky — detalhe a não menosprezar nos antecedentes (e desenvolvimentos) desta história: a produção de Innocence Is Kinky é de John Parish, colaborador de PJ Harvey.
Se a sua música se organiza como um espantoso exercício de colagem, capaz de preservar uma estranha fluência romanesca, o teledisco do tema que empresta o título a este último álbum é uma tocante exaltação do mais puro, e também mais pudico, realismo físico. Insisto na palavra: físico. Porquê? Porque em tempos das mais vergonhosas manipulações figurativas do corpo humano, comandadas pela sinistra ideologia da reality TV, Hval vem afirmar uma verdade da pele, dos músculos e dos cabelos que consagra algo que a mais corrente ideologia audiovisual sempre recalca: nenhuma nudez é uma forma de revelação seja do que for. Na verdade, despir um corpo é apenas deslocar o enigma da identidade, anunciando novas paisagens, misteriosas, ambíguas, mais ou menos indizíveis.
Sem insistir demasiado na calculada ironia simbólica do título, permito-me solicitar, por tudo isso, para já, a devida disponibilidade para este Innocence is Kinky — é uma das obras-primas do ano (digo eu...).


>>> Site oficial de Jenny Hval.

sexta-feira, junho 28, 2013

"A Lista de Schindler" em Blu-ray (1/2)

Steven Spielberg e Liam Neeson (rodagem de A Lista de Schindler)
A edição em Blu-ray de A Lista de Schindler marca o reencontro com um momento central na obra e na dinâmica criativa de Steven Spielberg — este texto foi publicado no suplemento "QI", do Diário de Notícias (15 Junho), com o título 'O Holocausto nas fronteiras do realismo'.

A propósito da edição comemorativa dos vinte anos de A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg, valerá a pena sublinhar que, em Maio deste ano, no Festival de Cannes, um júri presidido por Spielberg deu provas de uma admirável ousadia estética e lucidez política: a atribuição da Palma de Ouro do certame ao belíssimo La Vie d’Adèle, de Abdellatif Kechiche, consagrou, afinal, o filme mais difícil, no sentido em que era também o mais susceptível de gerar profundas clivagens.
O risco assumido pelo júri de Spielberg contraria, uma vez mais, a imagem corrente do realizador de Tubarão (1975) como mera engrenagem de uma indústria (americana) dominada por lógicas banalmente mercantis. Mesmo sem discutirmos o que significa tal asserção face à história gloriosa de Hollywood, importa lembrar que a maior parte dos que tinham por hábito difamar Spielberg, permaneceram (e mantêm-se) calados face ao fulgor de um filme como A Lista de Schindler. Na prática, deixaram que se instalasse a insídia do lugar-comum: ao abordar o Holocausto, Spielberg teria feito, finalmente, um filme “sério”.
Por uma razão antes do mais descritiva, importa começar por contrapor que há muito as heranças da Segunda Guerra Mundial tinham entrado na filmografia do realizador. Antes do mais, através do muito esquecido 1941 - Ano Louco em Hollywood (1979), delirante comédia burlesca que desmontava o imaginário clássico da guerra (e dos filmes de guerra); depois, em Os Salteadores da Arca Perdida (1981), primeiro capítulo da saga de Indiana Jones que colocava o herói em confronto com os nazis, disputando o acesso ao poder mitológico da “Arca perdida”; enfim, com O Império do Sol (1987), inspirando-se no livro de J. G. Ballard, Spielberg encenava a crueza da guerra através de uma componente fulcral de toda a sua obra: o misto de perplexidade e aprendizagem que pode estar envolvido no olhar de uma criança.
Seja como for, A Lista de Schindler está longe de ser um prolongamento linear dos títulos citados. Desde logo porque se trata, desta vez, de evocar factos históricos que foram objecto de aturada investigação: Spielberg inspirou-se no livro Schindler’s Ark (1982), de Thomas Keneally (1), “romance histórico” centrado na personagem de Oskar Schindler (2), empresário, membro do partido nazi, que acabou por utilizar a sua posição de modo a manter mais de um milhar de judeus, de origem polaca, nas suas fábricas, impedindo que fossem enviados para campos de concentração. Depois, porque, para o realizador, este foi também um processo eminentemente pessoal de reavaliação das memórias do Holocausto e, em particular, das raízes judaicas da sua árvore genealógica.

[...]

(1) THOMAS KENEALLY (n. 1935) – Escritor australiano, vencedor do Man Booker Prize de 1982, com A Lista de Schindler (Ed. Notícias). Autor de dezenas de livros de ficção e investigação histórica, também dramaturgo. Em 2012, publicou The Daughters of Mars, sobre duas enfermeiras australianas na Primeira Guerra Mundial.

(2) OSKAR SCHINDLER (1908-1974) – Figura de topo do partido nazi, colocou as suas fábricas de munições ao serviço do aparelho militar hitleriano. A história do modo como salvou muitos dos seus operários judeus, evocada no livro de Thomas Keneally, começou por ser contada por Leopold Pfefferberg, sobrevivente do Holocausto.

Radiohead: um concerto para download

Pablo Honey, opus 1, saíra em 1993, transformando o nome dos Radiohead numa referência modelar do rock alternativo. Cerca de dois anos mais tarde, a 13 de Março de 1995, surgia The Bends — dir-se-ia que a banda de Thom Yorke e Jonny Greenwood afirmava, desde logo, o seu direito ao estatuto de referência clássica, enraizado em temas como High and Dry [video], Just e Street Spirit.
Pois bem, pouco mais de três meses passados sobre o lançamento de The Bends, a 1 de Junho de 1995, os Radiohead estavam no Tramps, em Nova Iorque, para um magnífico concerto — agora, o seu download surge oferecido pela revista Paste ou, então, através do site Noisetrade. Para sublinharmos a importância do momento, importa recordar que o grupo estava a consolidar uma sonoridade que, dois anos mais tarde, se expressaria de forma eloquente em... OK Computer.


>>> Site oficial dos Radiohead.

"Lore", aqui e agora (2/2)

Liv Ullmann
A VERGONHA (1968), de Ingmar Bergman
Grande acontecimento cinematográfico: Lore, de Cate Shortland, é um dos filmes mais admiráveis feitos em anos recentes sobre as memórias da Segunda Guerra Mundial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Junho), com o título 'Quem se lembra de Ingmar Bergman?'.

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O drama não é que haja “blockbusters” a inundar o mercado. Já agora, WWZ – Guerra Mundial, com Brad Pitt, é um filme bem interessante e inteligente. O drama é que tenhamos passado a viver num contexto comercial & cultural que promove padrões de consumo, não apenas dominados pela gritaria promocional dos “blockbusters”, mas também enraizados numa dramática perda de memória.
Em todo os sentidos, entenda-se. Desde logo perda de memória histórica. Estreia-se um filme tão extraordinário como Lore, de Cate Shortland, sobre a Alemanha em 1945, e não há exactamente uma vaga de propostas jornalísticas (ou apenas de notícias) que chame a atenção para o simples facto de estarmos perante um objecto admirável para revisitarmos e repensarmos algumas raízes da Europa a que, dizem, continuamos a pertencer...
Vale a pena, por isso, recordar que tal hipótese de ver (e pensar) os grandes filmes que nos vão chegando nada tem a ver com qualquer derivação esotérica, supostamente promovida por alguns perigosos críticos enquistados no seu mundo “intelectual”. Nada disso. Aliás, em tempos recentes, outro grande filme sobre a reconversão narrativa da guerra dava pelo nome de Sacanas sem Lei, tinha realização de Quentin Tarantino e a personagem central a cargo de Brad Pitt (pelos vistos, este rapaz não é apenas um figurante das passadeiras vermelhas...). Aquilo que Tarantino propunha era uma espécie de realismo fantástico que encontra um contraponto adequado no realismo carnal de Lore. Cate Shortland afirma-se mesmo como uma muito legítima herdeira da crueza material e do questionamento existencial do cinema de Ingmar Bergman.
Neste mundo em que se promovem filmes através de campanhas cruzadas com cervejas ou telemóveis, quem se lembra do nome de Bergman? E quantos serão os espectadores que foram metodicamente (des)educados para a ele reagir com soberana indiferença, ou apenas supondo que talvez seja a alcunha do próximo DJ a interromper o trânsito do Bairro Alto?
Lembremos, por isso, essa obra-prima de 1968 que se chama A Vergonha. A partir das personagens interpretadas por Liv Ullman e Max von Sydow, Bergman encenava o perturbante radicalismo da guerra, quer dizer, a consciência muito crua de que o factor humano nunca é estranho às manifestações do Mal. Era uma guerra abstracta, mas as linhas de cumplicidade com o filme de Cate Shortland são muitas e muito significativas. Podemos sublinhar duas delas: primeiro, a utilização das paisagens, não como intervalos “decorativos”, antes como elementos vivos da dramaturgia; depois, a concentração de todas as significações nos corpos e olhares dos actores. Tragédia suplementar: sendo este um tempo de promoção beata dos “efeitos especiais”, será que ainda há espectadores com disponibilidade para admirar o que pode acontecer quando uma câmara regista o singularíssimo trabalho de um actor?

quinta-feira, junho 27, 2013

Cuca Roseta ou a verdade do fado

JOSÉ MALHOA
O Fado
1910
I - Longa espera: desde o lançamento do primeiro álbum de Cuca Roseta (Cuca Roseta, 2011) não creio que o país se tenha apercebido do facto de ter nascido uma das mais prodigiosas vozes da história do fado — em boa verdade, uma das mais admiráveis cantoras portuguesas, tout court. E por que me atrevo a escrever essa magnânima palavra que é país, porventura incorrendo nos erros de apressadas generalizações? Porque, de facto, quando a população — sobretudo a população com menos hipóteses de diversificação dos chamados "consumos culturais" — está quotidianamente sujeita ao massacre da música pimba e dos horrores da reality TV, é normal (entenda-se: é imposto pela norma) que Cuca Roseta, e muitos mais criadores com um mínimo de seriedade e talento, não sejam assunto preferencial do dia a dia, nem sequer em termos meramente informativos. Que quase todos os políticos, de todas as tendências ideológicas, continuem a mostrar-se indiferentes à gravidade de tal conjuntura — que, muito para além de qualquer caso pessoal, favorece um efeito global de deseducação —, eis o que diz bem do seu vazio de pensamento.

II - Compreende-se, assim, que o concerto em Lisboa para apresentação de Raiz, segundo álbum de Cuca Roseta, não tenha sido um evento badalado por todos os recantos do país. E importa reconhecer, sem dramas, que o Teatro São Luiz (dia 26, 21h00), embora com muitos espectadores calorosos, não esgotou. O certo é que estivemos perante um daqueles eventos que, por si só, define a singularidade de um talento e, sobretudo, a fascinante amplitude da sua expressão.

III - Importa reconhecer que, para Cuca Roseta, o passo não era fácil. Desde logo, porque ela se assume como herdeira de uma tradição que resiste a "modernismos" fáceis, colocando-se sob a referência tutelar de Amália; depois, consequentemente, porque o seu canto dispensa retoques pitorescos, visando o reencontro com uma verdade do fado que nasce da peculiar aliança entre pensar & sentir. Além do mais, não simplifiquemos: sem diminuir, de modo algum, o exemplar rigor da produção de Mário Barreiros, em Raiz, o primeiro álbum de Cuca Roseta tinha resultado de um trabalho invulgar com Gustavo Santaolalla que constitui, por certo, um caso raro de entendimento da universalidade expressiva do fado sem beliscar as suas componentes de... raiz. Aliás, num contexto em que tantas vezes (na música e não só) se exalta de forma simplista e beata a "tecnologia" das mais diversas produções, muito pouco se falou do facto de a produção de Santaolalla constituir uma das contribuições artísticas mais densas, complexas e sofisticadas das últimas décadas da história de toda a música portuguesa.

IV - Acompanhada por Bernardo Couto, Luís Guerreiro e Pedro Viana (guitarra portuguesa), Pedro Pinhal (viola de fado) e Frederico Gato (contrabaixo) — com um tema partilhado ainda com outra fadista, Carolina, e o guitarrista Mário Pacheco —, Cuca Roseta mostrou uma eloquente e complexa maturação do sentido dramático da sua voz. Podemos mesmo dizer que estão praticamente superados alguns desequilíbrios expressivos do concerto que realizou há cerca de um ano, no Tivoli, em particular através de uma maior contenção nas deslocações em palco, a ponto de podermos admitir que, em alguns temas, a performance poderia ainda beneficiar de um microfone fixo. Creio que algum excesso nos elementos "decorativos" (os vasos em fundo e as folhas no chão) desvalorizaram o possível contraste dos dois vestidos usados (cuja presença teria sido intensificada por um fundo neutro), mas, por mim, não gostaria de favorecer o empolar de tais questões — assistimos, não tenho dúvida, a um dos mais belos concertos do ano.

V - O trajecto de Cuca Roseta define-se, assim, a partir de uma imensa vitalidade criativa. E não falo apenas, nem sobretudo, naquilo que será a consolidação de uma "carreira". Falo, isso sim, da fidelidade a um imaginário fadista que recusa diluir-se em eventuais formatações promocionais da world music — nem que seja preciso escrever um fado do contra.

Brad Pitt e o vírus dos zombies

Recuperar a tradição do filme de zombies? Sim, mas conferindo-lhe uma ambiência soft... Eis o programa, tão interessante quanto contraditório, de WWZ - Guerra Mundial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Junho), com o título 'O cinema do lado da morte'.

Independentemente da qualidade dos resultados, parece óbvio que as histórias de zombies possuem um atractivo que transcende as épocas. Ou melhor, capaz de atrair componentes muito particulares dos medos e angústias de cada época. Afinal de contas, no seu devastador sonambulismo, o zombie é uma entidade que já passou para o lado da morte, mas continua a conviver (?) com os humanos. No caso de WWZ – Guerra Mundial, todo esse apelo simbólico surge multiplicado por um pânico muito contemporâneo: a globalização, não apenas da informação, mas dos vírus.
O filme aposta num registo arriscado para a sua própria identidade formal: por um lado, encena a ameaça zombie como uma vertigem de impensável rapidez e violência (as imagens de várias grandes cidades ocupadas por multidões de zombies deram mesmo origem a uma interessante colecção de cartazes); por outro lado, tenta preservar a dimensão tradicional de drama familiar, concentrando a acção na personagem de Brad Pitt e na sua preocupação de garantir a segurança da mulher e filhas. É uma verdadeira quadratura do círculo: encenar uma história de zombies violentamente predadores, evitando mostrar... sangue.
Seja como for, em tempos de tantos e tão disparatados “blockbusters”, WWZ tem pelo menos o mérito de se interessar pelas questões mais básicas. A saber: a exploração dramática do espaço e a criação de alguns elaborados tempos de “suspense”. A cena do laboratório (que precede o desenlace) constitui, nesse aspecto, um brilhante exercício de filmagem e montagem, mostrando o talento do realizador Marc Forster. É certo que ele já fez bem melhor (destaco o belíssimo À Procura da Terra do Nunca, com Johnny Depp), mas quando se convocam os zombies há sempre um preço a pagar.

A IMAGEM: Hedi Slimane, 2013

HEDI SLIMANE
Saint Laurent Resort 2014
2013

quarta-feira, junho 26, 2013

Andy Bey igual a Andy Bey

Diz a memória mitológica do jazz que era o cantor favorito de John Coltrane: discreto e rigoroso, senhor de uma depurada tensão dramática, Andy Bey, 73 anos, continua a gravar e a maravilhar-nos com a densidade da sua voz de barítono. Aqui fica um dos temas, 'S Wonderful (George & Ira Gershiwn), do seu novo álbum, The World According to Andy Bey; em baixo, um registo televisivo de 2008, com Like a Lover, clássico de Dori Caymmi e Nelson Motta refeito pela dupla Alan & Marilyn Bergman.



"Lore", aqui e agora (1/2)

Grande acontecimento cinematográfico: Lore, de Cate Shortland, é um dos filmes mais admiráveis feitos em anos recentes sobre as memórias da Segunda Guerra Mundial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Junho), com o título 'Realismo à flor da pele'.

Evitemos qualquer ecumenismo equívoco: as memórias do Holocausto nunca serão serenas ou apaziguadoras. O horror da Solução Final, arquitectada pelos nazis para dizimar o povo judeu, não pode ser contado como se fosse um soundbyte televisivo. Daí que a importância de Lore, de Cate Shortland, transcenda a simples ideia de uma “variação” sobre o modelo tradicional do filme de guerra. Primeiro porque ela aposta num elaborado registo psicológico, afinal de contornos exemplarmente clássicos. Depois porque Shortland corre o risco estético e moral de “transferir” o seu filme para o lado alemão. Mais do que isso: de o fazer retratando esse momento fatal em que, face à derrocada dos exércitos de Hitler, todos os alemães são levados a questionar o que sabiam ou não queriam saber, aquilo em que acreditaram ou aquilo que eram induzidos a ignorar.
Na personagem da jovem Lore (admirável Saskia Rosendahl), subitamente confrontada com o drama da sobrevivência dos seus quatro irmãos mais novos, confluem duas componentes de invulgar intensidade e simbolismo: no plano temático, a tragédia interior de uma Alemanha desagregada por uma terrível miragem de grandeza e poder; em termos narrativos, repondo a hipótese de um realismo carnal, à flor da pele, que nunca escamoteia a perturbante densidade da história colectiva.
Se há uma referência tutelar que podemos evocar será, por certo, a de dois filmes de Ingmar Bergman: O Ovo da Serpente (1977), precisamente sobre o nazismo, e A Vergonha (1968), observando a decomposição dos laços humanos numa situação de guerra. E não se entenda o nome de Bergman como uma “caução”: Lore é um objecto de excepção que, para simplificar, fica desde já como um dos grandes acontecimentos do nosso ano cinematográfico.

terça-feira, junho 25, 2013

D... de Disclosure

Os Disclosure acabam de lançar mais um teledisco para acompanhar um dos temas do seu álbum de estreia recentemente editado. Escolheram agora F... For You. A realização é assinada por Ross McDowell e Ben Murray.

Novas edições:
Major Lazer, Free The Universe

Major Lazer 
“Free The Universe” 
Secretly Canadian 
4 / 5

A história das chamadas 'cartoon bands' é coisa já com anos de vida, abarcando tanto nomes como os Archies (os tais que cantavam Sugar Sugar em 1969) ou os mais recentes Gorillaz. O projeto Major Lazer talvez não seja exatamente a expressão de mais uma 'cartoon band'. Mas é através da figura desenhada desse 'major', sempre de músculos à vista e arma nas mãos, que o projeto que agora está apenas nas mãos de Diplo se continua a apresentar. Em 2009, quando o DJ e produtor partilhava a condução das ideias do projeto com Switch, o álbum de estreia Guns Don't Kill People... Lazers Do procurava novos caminhos para genéticas jamaicanas (do dub ao dancehall) tendo as formas e as marcas de identidade do presente igualmente em conta. Apesar da partida de Switch (aconteceu em 2011 por divergências estéticas), o projeto não parece ter procurado outros caminhos, mantendo o novo álbum uma demanda semelhante, embora com outros (e bem estimulantes) resultados. Diplo é aqui a garantia do respeito por uma identidade e força viva que faz ainda respirar a figura do Major Lazer. Mas a alma deste Free The Universe deve muito à forma como o produtor soube somar as contribuições e os sucessivos diálogos que concretiza com uma impressionante paleta de convidados. O alinhamento abre com Santigold. Brilha de forma única com Amber Coffman (dos Dirty Projectors) no sedutor e fresco Get Free (lançado em single ainda em 2012) e encanta com o travo clássico de Jessica com Ezra Koenig (dos Vampire Weekend) que mostra que a sua parceria com os The Very Best foi apenas uma das suas muitas formas de expressar uma forma muito peculiar de alargar a outras geografias uma voz pop com passaporte americano. Mais adiante escutamos ainda as presenças de Wyclef Jean, GTA, Peches, Shaggy ou Bruno Mars. Caminhamos entre derivações diretas de ecos da cultura dub e dancehall e encontros com linguagens que passam pelo hip hop, periferias do R&B e pelos caminhos pelos quais passam as novas ferramentas eletrónicas. Mais que apenas um cardápio de "estrelas" ou um mostruário de sabores e exotismos, Free The Universe é uma cativante celebração no presente de ecos de uma herança antiga que aqui mostra como há mais caminhos que os da nostalgia a ter em conta quando de abordam estas coisas com código genético com região demarcada.

Para recordar as cassetes áudio

Começa a falar-se de um revivalismo das velhas cassetes áudio. Eram objetos interessantes como design. Deram-nos também uma primeira experiência de música portátil (quando os walkman entraram em cena na alvorada dos oitentas). Mas o som, convenhamos, era mau (ao contrário do vinil, cujas qualidades audiófilas estão mais que reconhecidas). O revivalismo da cassete de que se começa a falar parece assim ser um daqueles disparates que em pouco tempo acabarão diluídos no esquecimento antes mesmo de realmente instituído. Bastará apenas que os novos cultores da coisa escutem o som e, depois do encantamento da moda partilhada entre amigos, reconheçam que estavam mais bem servidos com os leitores de mp3... É claro que fazer mixtapes e desenhar-lhes capas é mais interessante que fazer playlists para descarregar e carregar play logo a seguir, mas enfim... (o som é mau!).

Bem mais consequente que um eventual regresso à cassete áudio para consumo musical parece ser contudo o trabalho de reflexão sobre memórias no departamento do design que nos propõe Neil Stevens, cujo trabalho a Flavorwire recentemente destacou. A sua série 'Don't Forget the Tape' nasceu da sua vontade em decorar a parede do sótão. E assim nasceram peças que evocam algumas das marcas de que se falava nos dias das cassetes...

Podem ver aqui a série completa.

Um novo percurso pelo British Museum

O Museu Britânico (em Londres) acaba de lançar um guia áudio e um catálogo que permite ao visitante acompanhar as representações de amor entre pessoas do mesmo sexo expostas na sua coleção. Um dos exemplos mais célebres que se cita em A Little Gay History é uma estátua do imperador romano Adriano a uma de Antínoo, cuja morte chorou, recordando-o em estátuas que mandou esculpir por todo o império. Uma xilogravura japonesa ou a pintura de David Hockney são outros dos focos de atenção. O guia é conduzido por Richard Parkison, o curador do departamento de antiguidades egípcias e conta com algumas colaborações, como as do ator Simon Russell ou da arista Maggi Hambling.

Podem ouvir aqui alguns excertos do guia áudio.

segunda-feira, junho 24, 2013

Mais vale tarde...

A canção já tem um tempinho de vida, uma vez que surgiu em pleno tríptico Body Talk. Mas só agora a sueca Robyn resolveu apresentar um teledisco para acompanhar U Should Know Better, tema que então apresentou em parceria com Snoop Dogg. Aqui ficam as imagens. Reparem no jogo de papéis trocados...

Novas edições:
Sigur Rós, Kveikur

Sigur Rós 
“Kveikur”
XL Records
2 / 5

A existência de uma obra musical numa região sonicamente demarcada pode ter, por um lado, a capacidade de distinguir cedo os seus autores pela diferença mas a insistência em eventuais marcas de identidade pode depressa transformar essas paisagens distintas num pântano onde acabam atoladas novas composições e novos discos. Revelados internacionalmente pelo impacte de Agaetys Byrjun (1999), os islandeses Sigur Rós cedo deixaram claro ser senhores de uma expressão muito pessoal de uma linguagem eléctrica distinta dos caminhos habitualmente apontados em terreno pós-rock, os contrastes entre o fulgor da distorção (e mesmo de explorações no limiar do ruído) e carácter angelical da pose vocal (e a presença subtil dos arranjos com cordas) criando um lugar musical único que cedo ganhou comparações com as imagens de gelo e lava de que é feita a paisagem islandesa onde esta mesma música brota. Apesar de algumas opções pontuais por soluções distintas, a medula da obra dos Sigur Rós nunca se afastou muito deste mesmo universo. Foi perdendo fôlego criativo, entrando numa quase rotina de acontecimentos na verdade progressivamente indistintos (apesar de no mais recente álbum, Valtari, o maior protagonismo de filigranas electrónicas ter gerado momentos mais interessantes). Reduzidos a três elementos, os Sigur Rós de 2013 apresentam em Kveikur um novo álbum sobre o qual se foi dizendo que seria mais “pesado”... Na verdade tanto o CD pesa quase nada e o vinil as 180 gramas da praxe, o peso tanto aqui como no som não revelando, salvo em pontuais momentos (nomeadamente no tema-título) grande ginástica capaz de real mudança. Mais que a forma de pensar a escrita muda o tom com que abordam cenografias em alguns momentos mais tensas, talvez mais assombradas (algo que de resto já sucedera no álbum sem título, apenas com dois parênteses, que haviam editado em 2002 e que, na altura, foi o sucessor direto de Agaetys Byrjun). Em Kveikur há assim, mais que uma mudança de rumo, uma opção por uma paleta menos luminosa de sons (ocasionalmente mais tensa e intensa), na verdade em temas como Hrafntinna ou Yfirbora sentindo-se afinidades com canções de outras etapas da sua discografia, eventualmente revelando subtilezas novas na conceção da sonoplastia. O que falha em Kveikur é a concretização de uma real capacidade em mudar, o alinhamento acabando por mostrar pouco mais que tentativas de variação de modelos já usados, de onde emerge um disco onde pouco de verdadeiramente novo ou diferente acontece. Cansado e aparentemente esgotado a linguagem dos Sigur Rós traduz a realidade de um grupo fechado num beco do qual não encontra a saída. Não é dos mais inspirados da sua discografia. E não é o lastro que juntam em alguns momentos que poderia fazer a diferença.

Os dias depois do fim

Chegou esta semana às salas portuguesas 'Lore', que garantidamente será um dos melhores filmes que vamos ver este ano. O texto que se segue foi originalmente publicado na edição de 22 de junho do DN com o título 'A viagem de cinco irmãos pela Alemanha derrotada'. 

Dos vencidos poucas vezes reza o filme de guerra. E sobre a II Guerra Mundial, a que maior representação teve na história do cinema (de ficção e documental), habituámo-nos a ver sobretudo narrativas pelo ponto de vista dos vencedores. Quer quando celebram os seus feitos militares quer mesmo quando olham os vencidos na etapa em que os ventos de guerra ainda corriam em seu favor. Lore, da realizadora australiana Cate Shortland, procura outro olhar. E através de cinco irmãos, abandonados pelos pais (certamente próximos da alta hierarquia nazi e que imaginamos capturados pelos aliados), acompanhamos os dias que se seguem à morte de Hitler e da capitulação da Alemanha. Caminham, a pé, rumo a uma distante casa de família. Sem pais, sem casa, sem comida, sem poder, sem prioridade, sem conforto, traduzindo afinal o peso do fardo de quem foi derrotado.

Baseado em The Dark Room, de Rachel Seiffert (escritora nascida em Oxford, mas com ascendência austríaca e alemã), Lore é não só um feito de realização, como vinca esse ponto de vista alemão poucas vezes visitado pelo cinema. Lore (interpretada por Saskia Rosendahl) é a irmã mais velha, adolescente. Com ela segue uma outra irmã ligeiramente mais nova, dois gémeos ainda crianças e Peter, um bebé de meses. Caminham por 900 quilómetros, passando pela Floresta Negra, encontrando um rapaz que se diz judeu, descobrindo em aldeias por onde passam fotografias de prisioneiros e de corpos amontoados. Há quem acredite nessas fotografias que Lore descobre. Mas também quem as diga fabricadas pelos aliados.

Lore vive essencialmente ao ar livre, a paisagem sendo mais uma sucessão de obstáculos que um cenário por onde a caminhada dos irmãos avança. A guerra acabou. Os soldados cruzam-se com eles ocasionalmente. Mas o medo, a desorientação, são companhia permanente. Tal como a dúvida sobre o que de facto se passou. E que, afinal, fazia o pai...

Cate Shortland filma os irmãos, a floresta, a lama, a sujidade. A câmara olha tudo de perto, a música de Max Richter (o mesmo autor da “re-composição” das Quatro Estações de Vivaldi) acrescentando uma dimensão onírica que dialoga com as imagens mas sem abafar o fulgor implosivo da viagem de dor e solidão daqueles irmãos que nada podem fazer perante um mundo em que a ordem que até ali conheciam desapareceu.

Toms (toms) club...

A música e a moda andam frequentemente de mãos dadas. E porque não de pés também? Um exemplo chega da Sub Pop, a mítica editora (que tem sido uma das mais importantes “casas” da cultura indie norte-americana) que resolveu juntar uma linha de calçado às comemorações do seu 25º aniversário. Em parceria com a TOMS, surge assim uma série de modelos e, ao mesmo tempo, uma campanha de solidariedade para com aqueles que não têm nada que calçar.

domingo, junho 23, 2013

Música, televisão e cinefilia

LALO SCHIFRIN
Qual o lugar do cinema no espaço televisivo? Abrangente? Talvez... Mas até que ponto a variedade é um valor? E de que modo as especificidades cinematográficas são atendidas e respeitadas? — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (21 Junho), com o título 'Trabalhos da cinefilia'.

1. Vejo a mais recente crónica de Thierry Jousse no canal Arte e não posso deixar de pensar na quantidade imensa de abordagens do universo cinematográfico que desapareceram dos canais de televisão, mesmo os que se dizem especializados na “sétima arte”. Jousse fala de bandas sonoras, celebrando a obra desse grande compositor de Hollywood que é Lalo Schifrin (nascido na Argentina, em 1932). Curiosamente, a sua evocação, feita num tom pessoal, sem ostentação, situa a descoberta do compositor... na televisão!


De facto, Schifrin é autor do lendário tema da série dos anos 60 Missão Impossível que, aliás, tem sido retomado em todas as derivações protagonizadas por Tom Cruise. As suas composições surgiram associadas a títulos célebres de actores como Steve McQueen (O Aventureiro de Cincinnati, 1965) ou Clint Eastwood (A Pele de um Malandro, 1968), denotando uma extraordinária capacidade de integração das mais diversas influências. Jousse evoca duas delas: Olivier Messiaen e Dizzy Gillespie (Schifrin foi aluno do primeiro e integrou a Big Band do segundo). Estamos perante uma crónica televisiva que convoca sinais do cinema mais popular, da música erudita e do jazz, sem ter de enfrentar angústias pueris ou enredar-se em dramas de comunicação. Vivemos, enfim, num tempo em que os valores dominantes dessa mesma comunicação levam ao gasto de horas a tecer sinistros processos morais sobre as consequências de um fora de jogo que um árbitro não viu... Em menos de cinco minutos, Thierry Jousse vem apenas lembrar que a cinefilia é uma coisa maravilhosa e partilhável.
2. Numa altura em que está quase a chegar a segunda temporada de The Newsroom (EUA: 14 de Julho, na HBO), o TV Séries está a repetir a primeira. O retrato das relações humanas no interior de um canal de informação por cabo envolve uma sofisticação narrativa crítica que, em muitos aspectos, nos remete para abordagens da televisão pelo cinema como Network (Sidney Lumet, 1976) ou Edição Especial (James L. Brooks, 1987). Como é óbvio, Aaron Sorkin, o autor de The Newsroom, é um bom cinéfilo.

Madonna em segredo

Novo teledisco? Performance musical? Teatro do absurdo? O novo projecto de Madonna é secreto e por isso se chama... Secret Project. No seu Instagram, ela tem deixado pistas mais ou menos esotéricas (desde 5 de Março), numa delas proclamando mesmo: "Quero começar uma revolução de AMOR!"
Em qualquer caso, parece tratar-se de uma proposta de assumido aparato simbólico, fazendo lembrar as atribulações formais do teledisco de American Life (entenda-se: a versão original). Uma coisa é certa: o projecto é co-assinado com o fotógrafo Steven Klein e já tem este trailer, apresentado no dia em que foi lançado, nos EUA, o documentário sobre a digressão 'MDNA' — no site oficial, o trailer está apenas disponível, sem informações adicionais.

Sound + Vision Magazine
Domingo, pelas 18.30 na Fnac Chiado



Este domingo, pelas 18.30 na Fnac Chiado, a sessão mensal do Sound + Vision Magazine celebra a passagem de mais um Dia da Música e muitos dos destaques agendados são para ouvir. Além de uma série de novos valores da música portuguesa, passaremos pela (re)descoberta de Sixto Rodriguez – num momento em que está em cartaz o filme Searching For Sugar Man – e pelo novo álbum dos These New Puritans. A edição em DVD e Blu-ray de Lincoln, de Steven Spielberg, será outro dos destaques desta edição.