sexta-feira, junho 28, 2013

"Lore", aqui e agora (2/2)

Liv Ullmann
A VERGONHA (1968), de Ingmar Bergman
Grande acontecimento cinematográfico: Lore, de Cate Shortland, é um dos filmes mais admiráveis feitos em anos recentes sobre as memórias da Segunda Guerra Mundial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Junho), com o título 'Quem se lembra de Ingmar Bergman?'.

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O drama não é que haja “blockbusters” a inundar o mercado. Já agora, WWZ – Guerra Mundial, com Brad Pitt, é um filme bem interessante e inteligente. O drama é que tenhamos passado a viver num contexto comercial & cultural que promove padrões de consumo, não apenas dominados pela gritaria promocional dos “blockbusters”, mas também enraizados numa dramática perda de memória.
Em todo os sentidos, entenda-se. Desde logo perda de memória histórica. Estreia-se um filme tão extraordinário como Lore, de Cate Shortland, sobre a Alemanha em 1945, e não há exactamente uma vaga de propostas jornalísticas (ou apenas de notícias) que chame a atenção para o simples facto de estarmos perante um objecto admirável para revisitarmos e repensarmos algumas raízes da Europa a que, dizem, continuamos a pertencer...
Vale a pena, por isso, recordar que tal hipótese de ver (e pensar) os grandes filmes que nos vão chegando nada tem a ver com qualquer derivação esotérica, supostamente promovida por alguns perigosos críticos enquistados no seu mundo “intelectual”. Nada disso. Aliás, em tempos recentes, outro grande filme sobre a reconversão narrativa da guerra dava pelo nome de Sacanas sem Lei, tinha realização de Quentin Tarantino e a personagem central a cargo de Brad Pitt (pelos vistos, este rapaz não é apenas um figurante das passadeiras vermelhas...). Aquilo que Tarantino propunha era uma espécie de realismo fantástico que encontra um contraponto adequado no realismo carnal de Lore. Cate Shortland afirma-se mesmo como uma muito legítima herdeira da crueza material e do questionamento existencial do cinema de Ingmar Bergman.
Neste mundo em que se promovem filmes através de campanhas cruzadas com cervejas ou telemóveis, quem se lembra do nome de Bergman? E quantos serão os espectadores que foram metodicamente (des)educados para a ele reagir com soberana indiferença, ou apenas supondo que talvez seja a alcunha do próximo DJ a interromper o trânsito do Bairro Alto?
Lembremos, por isso, essa obra-prima de 1968 que se chama A Vergonha. A partir das personagens interpretadas por Liv Ullman e Max von Sydow, Bergman encenava o perturbante radicalismo da guerra, quer dizer, a consciência muito crua de que o factor humano nunca é estranho às manifestações do Mal. Era uma guerra abstracta, mas as linhas de cumplicidade com o filme de Cate Shortland são muitas e muito significativas. Podemos sublinhar duas delas: primeiro, a utilização das paisagens, não como intervalos “decorativos”, antes como elementos vivos da dramaturgia; depois, a concentração de todas as significações nos corpos e olhares dos actores. Tragédia suplementar: sendo este um tempo de promoção beata dos “efeitos especiais”, será que ainda há espectadores com disponibilidade para admirar o que pode acontecer quando uma câmara regista o singularíssimo trabalho de um actor?