terça-feira, maio 07, 2013

Na morte de Giulio Andreotti

Toni Servillo, interpretando Giulio Andreotti,
no filme Il Divo (2008), de Paolo Sorrentino
1. O funcionamento automático do espaço mediático, ainda e sempre liderado pelas rotinas televisivas, tem qualquer coisa de assustador.

2. Assim, quando do falecimento de Margaret Thatcher, assistiu-se a uma mobilização acelerada (automática, precisamente) de um imenso e ruidoso "tribunal popular": não era possível falar da Sra. Thatcher, a não ser em função de um maniqueísmo pueril que obrigava a uma definição "pró" ou "contra"... Num certo sentido, era-lhe negado o direito simbólico a ter uma morte que pudesse, antes do mais, existir como notícia.

3. Não se trata, entenda-se, de escamotear a herança plural, contraditória e polémica da Sra. Thatcher. Trata-se, isso sim, de observar como, face a outros falecimentos, as notícias se remetem a um "naturalismo" cândido, sem dúvidas, sobressaltos ou hesitações ideológicas.

4. Assim, por exemplo, com a morte de Giulio Andreotti. Podemos lembrar que ele foi a "encarnação das glórias e misérias da democracia cristã" (Le Monde). Ou ainda que "ajudou a construir um sistema de favores pessoais que conduziu a uma vasta corrupção" (New York Times). Isto para não falarmos das acusações (de que foi ilibado pelos tribunais) de "cumplicidade com a Mafia" (The Guardian). O certo é que, de um modo geral, a sua figura emerge no espaço televisivo como uma curiosidade histórica, eventualmente com algumas zonas sombrias, mas sempre imbuída de um redentor "pitoresco".

5. Poderíamos evocar o filme Il Divo (2008), que Paolo Sorrentino fez sobre Andreotti. Mesmo que o possamos considerar um objecto cinematográfico muito pouco interessante (como eu considero), pelo menos passa por ele a noção de que o legado histórico de Andreotti é uma paisagem densa e complexa, não poucas vezes perturbante.

6. Poderíamos também lembrar esse filme admirável que é Bom Dia, Noite (2003), de Marco Bellocchio, sobre o rapto e assassinato de Aldo Moro, lembrando (como o faz o New York Times) que Andreotti não correspondeu aos pedidos de Moro para negociar a sua libertação com as Brigadas Vermelhas.

7. Em todo o caso, o que está em jogo não é tanto a reposição da verdade (que, obviamente, ninguém detém em absoluto), como a sua redução a inventários mais ou menos anedóticos. De acordo com essa ideologia eminentemente televisiva, um árbitro que teve o azar de não ver que "aquele" jogador que marcou um golo estava, pelo menos, 2 escandalosos milímetros em fora de jogo, esse árbitro pode ser objecto de violento opróbrio durante pelo menos uma longa semana... Que Giulio Andreotti tenha lançado vagas de irrisão sobre os mais nobres ideais da democracia italiana, eis um pormenor sem importância.