quarta-feira, abril 03, 2013

Saudades de Errol Flynn

Como é que se constrói a imagem (jornalística e não só) do cinema corrente? E porque é que os números das bilheteiras são muitas vezes endeusados de forma simplista e redutora? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 Março).

É verdade. Por muito que custe aos que lidam mal com palavras menos fáceis ou mais exigentes, vivemos num mundo de narrativas. Podemos mesmo dizê-lo de forma contundente: tudo é narrativa. Como? No sentido em que nenhuma manifestação do real se oferece transparente e imaculada: a sua percepção é sempre uma encruzilhada de linguagens mais ou menos conscientes, por vezes como imenso poder que escapa às consciências. Ver, descrever ou comentar o mundo, nomeadamente no espaço televisivo, é habitar uma imensa galáxia de narrativas. Ou ainda: somos sempre narradores, mesmo (ou sobretudo) quando nos apresentamos como meros ilustradores de um saber supostamente universal.
Vale a pena referir um significativo exemplo entre as recentes novidades das salas de cinema: G.I. Joe: Retaliação, um “filme de acção” inspirado num universo de personagens que envolve brinquedos, banda desenhada e jogos de vídeo. Trata-se de um daqueles objectos que, a meu ver, metodicamente, estão a induzir nas mentes dos espectadores mais jovens uma visão redutora, totalmente maniqueísta, das narrativas cinematográficas: para além do primarismo da caracterização psicológica, o gosto do espectáculo surge reduzido à acumulação de banais números de circo (os célebres “efeitos especiais”) que, precisamente, se limitam a copiar alguns clímaxes típicos dos mais estereotipados jogos de vídeo.
Mas há um outro lugar-comum a funcionar. E com ramificações mais ou menos jornalísticas. Assim, começaram já a circular as notícias sobre a performance comercial de G.I. Joe: Retaliação (em particular os primeiros números provenientes do mercado americano). A narrativa é quase sempre a mesma: muitos milhões acumulados, mas uma omissão sistemática dos valores gastos na promoção e na produção. Além de parecer que os filmes são feitos de borla, nem sequer é referido que uma significativa percentagem das receitas, sejam elas quais forem, não vai para os produtores, uma vez que pertence aos exibidores... Na prática, tais notícias favorecem uma visão simplista e pueril da vida económica do cinema.
Não poucas vezes, insinua-se ainda uma narrativa anti-intelectual: os críticos de cinema menosprezam os filmes com grandes receitas... Conheço tal forma de estupidez há muitos anos, mais concretamente desde que a defesa apaixonada de um recordista de bilheteiras como Tubarão (1975), de Steven Spielberg, era capaz de suscitar algumas curiosas censuras ideológicas. Em todo o caso, se é de gosto pela aventura que se trata, sugiro o regresso a antigas maravilhas como As Aventuras de Robin dos Bosques (1938), título lendário de Errol Flynn realizado por Michael Curtiz e William Keighley. A simples coreografia de um dos seus duelos de espada basta para compreender como o sentido de espaço e tempo (narrativa, hélas!) de G.I.: Joe Retaliação é um apoteótico disparate.