quarta-feira, abril 03, 2013

José Sócrates não está no "Big Brother"

GEORGE GROSZ
Boneca de Seda
1937
* Surgiu uma nova narrativa sobre José Sócrates: afinal, garantem os oráculos que o demonizam, ele vai estar na RTP1 a fazer oposição ao Governo de Pedro Passos Coelho...

* Como é óbvio, ninguém espera que o ex-primeiro-ministro tenha, agora, uma visão muito positiva do actual Governo. Em todo o caso, o que aqui se discute não decorre das argumentações (interessantes ou não) que Sócrates possa vir a sustentar nos seus comentários televisivos. O que está em causa é a bizarra viragem da ideologia anti-"socrática".

* Há poucas semanas, para essa ideologia, não só a sua personalidade se confundia com um apocalipse  moral perdido na poeira da história, como muitas cabeças democráticas acharam por bem defender a ideia de que o país estaria melhor se... o calassem. Como é que, agora, Sócrates deixou de ser um detrito sub-humano para passar a ser reconhecido como figura activa da actual dinâmica política?

* Assim vai o pensamento político em Portugal. Não parece haver mais nada que consiga enunciar-se para além de uma fulanização anedótica e circunstancial. Chega-se mesmo a esta tristíssima miséria cultural: a mesma personalidade que foi votada ao caixote do lixo da história reaparece, alguns dias depois, como uma peça fulcral do xadrez político. Se tudo se resolvesse com a elegância da ironia, diríamos  apenas que nunca o próprio Sócrates teve tanta e tão eficaz promoção pública...

* Daí a pergunta: porque é que este tipo de não-pensamento nos obriga a viver como se a cena política fosse um daqueles concursos televisivos em que os participantes cantam, dançam ou têm de mostrar que são capazes de fazer o pino a enviar um tweet? Estamos condenados à vulgaridade do pitoresco? Numa conjuntura em que se anuncia a renovação dos horrores humanos (e, sobretudo, desumanos) do Big Brother, porque é que os comentadores políticos, em vez de dizerem alguma coisa de consistente sobre esse gigantesco desastre público, gastam o seu (e o nosso) tempo a elaborar cenários sobre José Sócrates?