É um dos grandes (e, infelizmente, menos conhecidos) autores do cinema inglês dos últimos trinta anos: Terence Davies está de volta com o admirável O Profundo Mar Azul — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Abril).
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Na sua proverbial ignorância, o senso comum tende a situar as relações entre cinema e teatro entre duas balizas formais: por um lado, o cinema teria nascido através do “registo” do espaço teatral; por outro lado, algum cinema moderno limitar-se-ia a “duplicar” esse espaço (recorde-se a avalancha de insultos contra as mais extraordinárias experiências narrativas de Manoel de Oliveira). Apetece dizer que a obra de Terence Davies existe para desafiar o simplismo do senso comum: assumindo a teatralidade como uma componente (também) cinematográfica, ele vai celebrando o cinema como uma maravilhosa arte de reinvenção das outras artes, a começar, justamente, pelo teatro.
O Profundo Mar Azul é uma esplendorosa concretização de tais pressupostos. Dir-se-ia que o ziguezague dramático, entre vida e morte, protagonizado pela comovente Hester Collyer (Rachel Weisz) se constitui, ele mesmo, como um exuberante palco de tensões e contradições. Para Davies, cada ser humano existe num teatro de ideias e emoções em que, de uma só vez, somos matéria palpável e imaginação abstracta, ânsia muito física e desejo etéreo, porventura corpo e alma.
Tudo isso, de tão admiravelmente teatral, gera uma singularíssima ambiência, cinematográfica como poucas. Com inquestionável rigor, Davies vai construindo, assim, uma invulgar filmografia (cuja primeira longa-metragem, Vozes Distantes, Vidas Suspensas, surgiu em 1988), das mais brilhantes do continente europeu. Num mundo ideal, O Profundo Mar Azul teria um destaque imenso em tudo o que é informação, relegando a reedição do Big Brother para uma discreta notícia de rodapé. Nada de surpreendente: afinal de contas, Davies mais não faz do que filmar a distância trágica entre o idealismo e a imperfeição humana.