domingo, fevereiro 24, 2013

Grândola sem democracia

Cartaz de VIEIRA DA SILVA
1. Miséria portuguesa. Não falo do pensamento que vai na cabeça de cada cidadão (coisa felizmente ainda não redutível a manchetes televisivas ou polegares do Facebook). Falo, antes de tudo o mais, da miséria da esquerda institucional que, pela sua concordância cobarde ou pelo seu silêncio cúmplice, assiste, entre o regozijo brejeiro e a inanidade de pensamento, ao assassinato metódico de um dos mais genuínos símbolos da história democrática portuguesa: Grândola, Vila Morena, cântico de liberdade e libertação, passou a ser miseravelmente aplicado como peça de censura ao direito de expressão dos governantes (nalguns casos colocando-nos, ou tentando colocar-nos, do lado da pornografia ideológica: como se dizia num noticiário televisivo, eram “20 pessoas” a protestar, cantando...)

2. Perante tal miséria, é penoso ter que acrescentar que Miguel Relvas não é, de facto, um modelo de génio político, passe o eufemismo. Infelizmente para todos nós, o que está em jogo não é o “valor” seja de quem for – o que está em jogo é esta estupidez triunfante, sustentada pelas redes “sociais” (quem lhes concedeu o privilégio ditatorial de “organizar” o quotidiano da política?) e também alguns modelos de “informação” televisiva que só sabem celebrar a crispação (desse mesmo quotidiano). Na prática, o símbolo de abertura e pluralidade tornou-se uma arma de silenciamento: José Afonso cantou a proliferação das vozes; agora, aplicam-se as palavras de José Afonso para, literalmente, criar ruído e massacrar a nitidez de qualquer voz.

3. A direita no poder, sempre insegura e sem imaginação, não sabe o que dizer, a não ser recordar a necessidade de respeitar as regras da ordem democrática – desgraçadamente para todos nós, assiste-lhe a razão de lembrar que a ordem é um valor e que as alegrias da desordem (muitas e fascinantes em muitos momentos da nossa história colectiva) não se confundem com a criação da barafunda pela barafunda.

4. E a esquerda?...

5. Qual esquerda? A que, com ou sem foice e martelo, ainda depende do imaginário comunista refugia-se numa idealização beata que, em boa verdade, começou há muito tempo, na sua incapacidade de lidar com as monstruosidades que a sua própria ideologia produziu. (O que, entenda-se, não significa uma dúvida automática em relação à sua disponibilidade para integrar a dinâmica democrática: Melo Antunes disse-o, sem Grândola e sem espalhafato, apenas através da coragem humana das palavras... Ou já ninguém se lembra?...). A outra esquerda, a “europeia”, refugia-se num discurso de purificação moralista, procurando não desmanchar a pose liofilizada de quem, se não morrer do seu tédio, irá perecer na teia de pusilanimidade de que se alimenta. Há uma maneira cristalina de dizer isto: na sua inquestionável boa vontade, já era tempo de António José Seguro compreender que, para ter alguma força política contra Miguel Relvas (e o poder que ele representa), tem que começar por defender o direito do próprio Relvas a ser tratado como um cidadão na posse de todos os seus direitos democráticos. Dizer que o povo português tem o “direito” e o “dever” de protestar é apenas acreditar que a elaboração da pose pode disfarçar dois lapsos terríveis: o vazio do discurso e a simplificação pueril das responsabilidades da vida democrática.