1. Tristeza existencial, nostalgia filosófica, enfim, miséria de pensamento: o inferno que a Igreja católica prometia a cada um de nós, pecadores, deu lugar à punição pelo Facebook. Mais do que isso: proliferam as arenas virtuais de assassinato pela difamação. Por obsceno impensado filosófico e político, insistimos em atribuir-lhes a designação de redes sociais sem, por um instante, reflectirmos sobre a sociedade que nelas se configura.
2. Dispenso-me, por isso, de insistir nos valores do mais casto bom senso e na inteligência que, apesar de tudo, ainda o pode orientar. Que é como quem diz: não se trata de lançar uma suspeita automática ou global, nem sobre as mais diversas e criativas utilizações do Facebook, muito menos sobre a idoneidade da maioria dos seus utilizadores. A questão é outra: é exactamente a mesma que envolve a necessidade de lidarmos com a brutalidade das memórias de Hiroshima e Nagasaki, sem que tal nos impeça de aceitar e apoiar os princípios razoáveis, humanamente sustentados, de aplicação da energia nuclear.
3. Não creio que Filipa Xavier e o seu blog (‘Fashion-à-Porter’, assinado como Pépa Xavier) seja uma entidade a justificar atenção ou especulação muito para além do espaço específico da sua intervenção: a sua visão do mundo – e, em particular, a sua abordagem das tendências da moda – decorre de um discurso corrente sobre os domínios em causa, com a sua retórica própria e também uma lógica particular de inserção em determinadas campanhas de marketing. Ponto final, nada a assinalar.
4. Acontece que, precisamente no âmbito de uma dessas campanhas (para a marca Samsung e, em particular, para as suas tablets), a autora do referido blog achou por bem dizer que, entre os seus desejos para 2013, se incluía uma mala Chanel...
Tanto bastou para que, na sua social omnipotência, as ditas redes passassem a conter, promover e exponenciar uma avalancha de insultos contra a pretensão de Filipa Xavier, por princípio evocando os dramas da “crise” e censurando tão luxuoso e luxuriante arrojo.
5. Como não ser engolido por estas novas formas de estupidez-em-rede? Acima de tudo: como viver num mundo em que a mera proliferação de links, trocas e polegares ao alto conquistou esse poder terrível, potencialmente ditatorial, de ser citada, tratada e respeitada como expressão única, definitiva e inquestionável de uma “verdade” que, além de social, só se sabe conceber e apresentar como compulsiva?
7. A crise do Estado não é, aliás, outra coisa. Consiste em aceitar ceder à violência (des)organizada dessas redes muitos dos poderes de sistematização e descrição de valores que, salvo melhor opinião, continuam a pertencer à comunidade que se exprime no Estado e no sistema de leis que nele se materializa e põe em prática (social, justamente).
8. Como é óbvio, o que está em causa não são nem as especificidades do discurso de Filipa Xavier (muito pouco interessantes, a meu ver) nem as estratégias de promoção da Samsung (que me parecem apenas banais, na sua tentativa de incorporar a visão do "consumidor comum"). O que está em causa é o movimento interior de uma sociedade que se enquistou de maneira automática, e automaticamente submissa, na sua colagem ao social-em-rede, a ponto de se demitir da defesa básica de alguns dos valores que a fundamentam. A saber:
I – a dignidade individual;
II – a circulação abrangente, plural, saudavelmente contraditória, dos discursos individuais ou institucionais, informativos ou de reflexão e pensamento.
9. Com muitas e quotidianas encarnações, esta tragédia muito social é tanto mais grave e gravosa quanto acontece perante o silêncio de quase toda a classe política e respectivos sectores de pensamento. Mais do que isso: muitos políticos parecem preferir optar por um estilo de intervenção que acaba por não ser estranho ao aparato de guerrilha especulativa que, não poucas vezes, as redes sociais acolhem, organizam e multiplicam.
10. Não é preciso muito mais do que isso para esvaziar a política, encurralar o Estado, desmembrar os laços sociais e, por fim, anular o lugar específico do cidadão.