As especulações em torno da atribuição da Bola de Ouro são sintomáticas do sistema mental que domina muitos discursos televisivos: o maniqueísmo impera — esta crónica de televisão foi publicada na revista 'Notícias TV', do Diário de Notícias (11 Janeiro).
1. Cristiano Ronaldo ou Lionel Messi? A enxurrada de “análises” e “especulações” que a Bola de Ouro suscita fica, também ela, presa pela questão da “justiça” ou da “injustiça” das escolhas da FIFA. Santo Deus! O futebol como permanente tribunal é um pobre sintoma de civilização... Um pouco como quando vemos um qualquer filme americano com muitos efeitos especiais a obter destaque “automático” nos noticiários. Quase ninguém mostra empenho em variar, colocando algumas questões menos mecanicistas. Por exemplo: não há cinema europeu nas salas? Ou ainda: porque é que os jogadores que marcam poucos golos são quase sempre secundarizados? O sistema mental dominante parece temer a diversidade do mundo.
2. Eis um dado objectivo e triste: uma zaragata num jogo de hóquei em patins consegue mais tempo de antena que mil e uma coisas interessantes que, todos os dias, acontecem no planeta. Por isso, mais do que nunca, importa perguntar que filosofia (jornalística e existencial) sustenta semelhantes destaques? Será que, desde que haja um objecto a voar e alguém a insultar alguém, isso basta para justificar o tempo, o trabalho e o dinheiro que uma notícia custa? Não acredito que haja quem queira convencer-nos que estamos condenados a viver no meio de escaramuças mais ou menos patéticas... mas às vezes parece.
3. A série Luck, de Michael Mann, com Dustin Hoffman na dupla condição de actor e produtor, estreou há largos meses no canal TV Séries; em todo em caso, mea culpa, só recentemente tive oportunidade de começar a ver os episódios gravados. Deparei com um retrato impressionante, labiríntico, angustiado e angustiante, do mundo das corridas de cavalos e das suas relações com uma economia mais ou menos paralela. A série foi, infelizmente, cancelada (devido à morte acidental de três cavalos durante a rodagem). Mas é um exemplo admirável de como, para além das coisas visíveis, é possível observar e filmar uma inquietante entidade em movimento. A saber: a circulação do dinheiro.