1. Um frémito de entusiasmo, tão incontido quanto bizarro, perpassou nos mais diversos meios de comunicação das mais distantes paragens: ao receber o prémio Cecil B. DeMille, no seu discurso de agradecimento nos Globos de Ouro, Jodie Foster teria assumido, finalmente, a sua homossexualidade. Coming out — foi a expressão mágica que cruzou o planeta. Em boa verdade, precisamos de não simplificar. Houve também muitas reacções nada entusiásticas, acusando Foster de ambiguidade e hipocrisia. Um jornal tão sério como The Guardian dava conta disso mesmo nas suas páginas, abrindo espaço para quem elogia o "génio" da actriz (Sam Leith) e também para quem a acusa de "manipulação mediática" (Michael Wolff). É, por tudo isso, um discurso que importa ver, ouvir e ler.
2. Um dos aspectos mais desconcertantes que cruza todas estas reacções — incluindo o magnífico, magnificamente discutível, texto de Matthew Breen, na revista The Advocate, apresentando um ponto de vista ancorado no espaço que ele próprio define como "LGBT media" — é a certeza de que o "coming out" de Jodie Foster era o tema nuclear do seu discurso. A certeza, enfim, de que, em última instância, o seu discurso se pode sempre reduzir a uma afirmação austera, para alguns necessariamente militante: "Eu-sou-gay".
3. Vale a pena discutir tal leitura. Podemos considerar que a referida certeza se enraiza no reconhecimento público de uma relação (já terminada) com outra mulher, Cydney Bernard. Podemos também reconhecer que Foster se diz gay por um processo de dupla ironia: primeiro, prometendo uma revelação e dizendo que está... sozinha, solteira (single); depois, acrescentando que há muito tempo se assumiu. E convenhamos que as palavras com que o diz não são simples nem banais: "(...) Já me assumi [my coming out] há uns mil anos, por alturas da Idade da Pedra, nesses dias exóticos em que uma rapariga frágil se abria a amigos de confiança e familiares, companheiros de trabalho, e depois, gradualmente, com orgulho, a todos os que a conheciam, a todos com quem tinha realmente um encontro." Convém não esquecer, a esse propósito, que este é o discurso de uma actriz que, antes mesmo de ter surgido em títulos emblemáticos como Taxi Driver [foto] (1976), tinha já uma "longa" actividade iniciada aos 3 anos de idade — como ela lembrou, dos seus 50 anos (nasceu a 19 de Novembro de 1962), 47 são de carreira no film business.
4. Há uma opção implícita nestas palavras que importa reter: Jodie Foster diz, afinal, que não vê nenhuma relação de obrigação entre o (seu) ser gay e a respectiva explicitação pública. Há quem estabeleça uma ponte automática entre tal recusa, vinda de uma figura pública, e as condições de marginalização e repressão a que, em muitos contextos, os gays são sujeitos [remeto, uma vez mais, para o texto de Matthew Breen]. Mas a posição de Jodie Foster recusa, liminarmente, tal associação simbólica, assumindo um discurso contundente contra o triunfo de uma cultura de banalização do privado: "(...) Agora, aparentemente, dizem-me que qualquer celebridade deve enaltecer os detalhes da sua vida privada através de uma conferência de imprensa, um perfume, ou um reality show em horário nobre."
5. O mais extraordinário perante estas palavras (admiráveis e corajosas) de Jodie Foster é que a sua mensagem parece ser recusada pelos discursos mais diversos, mesmo alguns que, formalmente, se colocam do seu lado. O que ela nos pede é que nos preocupemos menos com a sua sexualidade e olhemos à nossa volta, contemplando a degradação de uma cultura dominante, de raiz televisiva, que fabrica e promove a quotidiana rarefacção de qualquer centelha de verdade humana.
6. Aquilo a que Jodie Foster resiste não é ao conhecimento da sua orientação sexual — é ao facto de a respectiva identificação pública, com pompa e circunstância, poder constituir um valor político para os outros, quando tem apenas um valor íntimo, inalienável, para ela própria. Aquilo a que ela resiste é, no fundo, à inversão da configuração da liberdade individual, a ponto de se instaurar uma censura social cuja norma consiste, como Roland Barthes nos ensinou, não em impedir, mas em "obrigar a falar".
7. Ficámos a saber um pouco mais sobre a vida sexual de Jodie Foster? Em boa verdade, não. Felizmente. Ficámos, isso sim, a compreender que raras vezes se dá a devida atenção àquilo que é dito, com inteligência, por uma figura pública — sobretudo uma figura pública com um discurso cuja complexidade desafia, ponto por ponto, a mediocridade formatada dos "famosos". Assim, não deixa de ser admirável (admiravelmente triste, quero eu dizer) que a afirmação mais sensual de Jodie Foster tenha sido sistematicamente ignorada. Qual? Ao referir-se aos profissionais das equipas com quem trabalhou, "amizades de sangue, irmãos e irmãs", Jodie Foster exaltou o radicalismo que o trabalho cinematográfico pode envolver. Disse ela: "(...) Fizemos filmes juntos, e não é possível ser mais íntimo do que isso."
* NOTA: Em toda esta agitação em torno do discurso de Jodie Foster, é o nome do patrono simbólico do seu prémio — Cecil B. DeMille — que tende a ser esvaziado de qualquer memória. Ironia cruel, sem dúvida, já que DeMille, autor de Os Dez Mandamentos (1956), ilustra a dinâmica paradoxal de alguns criadores de Hollywood, conservadores no seu sistema mental, espectacularmente inovadores no labor de encenação e narrativa. Isto sem esquecermos que as suas representações da sexualidade continuam a desafiar as convenções que, pelo menos até certo ponto, parecem sustentá-las.