Uma antologia de gravações inéditas e raras dirigidas por Georg Solti para o catálogo da Decca surge nesta edição que assinala o centenário do maestro. Este texto foi originalmente publicado no DN online.
Salzburgo, 1937. O jovem Georg, que ainda não completara os 25 anos, assistia a ensaios da Orquestra Filarmónica de Viena numa Flauta Mágica, de Mozart, quando deu por si convidado a ajudar, tomando o lugar de um dos músicos que, como tantos outros colegas nos dias anteriores, era dado como mais uma vítima de uma epidemia de gripe. A dada altura o maestro entra na sala para ele mesmo dirigir o resto do ensaio. No final, vira-se para o jovem e dirige-lhe uma palavra: "bene" (ou seja, "bem"), como que aprovando a sua participação. O jovem músico chamava-se Georg Solti e o maestro não era senão o lendário Arturo Toscanini. E anos depois, na sua autobiografia, Solti recordaria que nenhum cumprimento que recebeu ao longo da sua vida lhe deu a mesma alegria que aquele breve elogio de Toscanini.
Uma gravação dessa mesma produção de A Flauta Mágica, em concreto uma ária na qual podemos escutar a contribuição de Solti no glockenspiel, é uma das gravações que, agora reunidas, nos oferecem um retrato essencialmente feito de registos inéditos e raridades da carreira de um dos mais celebrados maestros do século XX. No ano do seu centenário (Solti nasceu em Budapeste a 21 de outubro de 1912, o disco duplo Solti - The Legacy 1937-1997 propõe assim um olhar panorâmico pelos 60 anos de vida discográfica, desde essa lendária Flauta Mágica de 1937 até Pace, pace mio Dio, de La Forza del Destino, de Verdi, gravado no mesmo ano em que morreu.
Apesar daquele célebre episódio de 1937 que esta antologia recorda, a obra discográfica de Georg Solti tem verdadeiro ponto de partida em 1947, ano do qual aqui é recordado Abschied, D957 No. 7, de Schubert. O maestro, que dirigiu a Bayerische Staatsoper a partir de 1946, a Oper Frankfurt depois de 1952, a Covent Garden Opera Company a partir de 1961 e que, depois de 1969 foi durante 22 anos o diretor da Chicago Symphony Orchestra conheceu alguns dos maiores momentos da sua obra registados nos espaços da ópera. O alinhamento desta antologia, que recolhe gravações ora captadas ao vivo ora em estúdio, reconhece esse mesmo protagonismo na sua carreira, recuperando assim árias de óperas de Berg, Richard Strauss, Berlioz, Verdi, Britten ou Wagner, abrindo ainda um pontual espaço a repertório orquestral com um concerto para dois pianos de Mozart e ainda duas canções de Schubert. Com ele encontramos orquestras como a das óperas de Munique ou Covent Garden (Londres), a Sinfónica de Chicago ou a Chamber Orchestra of Europe, e vozes como as de Placido Domingo, Kire Te Kanawa, Margaret Price, Renée Fleming, Nicolai Gedda ou Elisabeth Schwarzkopf. Como curiosidade arquivística apresentam-se ainda três momentos captados em ensaios durante as sessões para a gravação, pela Decca, de umas Bodas de Fígaro, de Mozart.