Uma das mais estimulantes séries de lançamentos discográficos do nosso tempo está a mostrar de forma bem clara que a velha noção de frontera entre géneros musicais está tão derrubada como o Muro de Berlim. Este texto é parte de um artigo publicado na edição de 24 de novembro de 2012 do suplemento Q., do DN, com o título ‘Quando a música do pasado ajuda a inventar a música do futuro.
O mais recente título da série Re-composed, acabado de editar, é o que assinala o maior salto no tempo, ao justapor numa mesma re-composição a música de Vivaldi e a de Max Richter. E assinala uma abordagem diferente ao conceito-base da série a colocar como base do trabalho do compositor convidado não o catálogo de gravações d’As Quatro Estações de Vivaldi (a peça sobre a qual aqui se trabalha), mas antes a própria obra em si, a gravação contando assim com o registo de uma nova performance com a Konzerthaus Kammerorchester Berlin, dirigida por André de Ridder, o violinista Daniel Hope e o cravista Raphael Alpermann.
Max Richter resolveu aqui “abrir a partitura a o nível de cada nota”, pelo que o próprio músico explica que, trabalhar com uma gravação pré-existente seria “como trabalhar num poço de uma mina imensamente rico em diamantes mas do qual não seria possível extraír nenhum deles”, como lemos no booklet. Mergulhou assim na partitura e assim, recompor, de facto, a peça. A estrutura maior da obra serve de ponto de partida, mas Richter na verdade acabou por deixar de fora três quartos da partitura original. Escute-se Spring 0, a primeira parcela desta nova “Primavera”, que abre com aquilo que o músico descreve como uma “nuvem dub” usando elementos orquestrais que propõe como um perlúdio que prepara a chagada do primeiro andamento. As electrónicas entram depois em cena. Por vezes discretas, quase inaudíveis, mas presentes já que Max Richter fez questão de estabelecer ligações ao “universo electrónico que é parte tão importante da linguagem musical do nosso tempo”.
Apesar das marcas de época que transporta uma composição que data originalmente de 1723 a abordagem de Max Richter procurou valorizar os cruzamentos de linguagens possíveis, não apenas com os espaços das electrónicas contemporâneas, mas também com marcos da história da cultura pop. Identifica, por exemplo, afinidades entre a força percussiva da primeira parte de Summer 1 com o estilo do baterista dos Led Zeppelin John Boohnam e pediu ao cravista Raphael Alpermann uma abordagem precisa, “como num relógio”, em Autumn 2, procurando assim evocar a forma como este instrumento chegou a ser usado em discos dos Beach Boys ou em Abbey Road, dos Beatles. Mas no fim a visão é claramente sua e não será difícil reconhecer, como o próprio Max Richter o fez, pontes possíveis entre o espaço do pós-minimalismo onde se integra e, como ele mesmo aponta, os “padrões regulares” que caracterizam a música de Vivaldi.
Através destes três últimos volumes, observamos como técnicas de construção musical mais frequentes nas eletrónicas do presente podem ajudar a pensar novas formas de escutar referências e, de certa maneira, imaginar novos modos de trabalhar com uma orquestra. Mais que reinventar o passado, estes discos podem estar a ajudar a definir caminhos para o futuro.
Capa desta edição da série Re-Composed.
Veja aqui um video onde Max Richter e os músicos que com ele colaboraram neste disco nos apresentam esta re-composição da obra de Vivaldi.