O regresso de Vertigo, de Alfred Hitchcock, é também o reencontro com o primado do grande ecrã. Os downloads podem esperar... Este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'O cinema é maior que a vida'.
Quantas vezes James Stewart se vai enganar ao identificar a mulher sonhada em Kim Novak? Quantas vezes vamos sentir que aquela paixão, violenta e cristalina, se identifica com as sombras da morte? Quantas vezes tudo aquilo que já sabemos se vai repetir sob uma aura perturbante de mistério?
Nas últimas vezes, isso aconteceu quase sempre num pequeno ecrã. Que é como quem diz: mais de meio século depois da sua produção, Vertigo, de Alfred Hitchcock, existia, sobretudo, como obra-prima dos ecrãs “alternativos” (televisão, computador, etc.). Na prática, isso significava que duas ou três gerações de espectadores nunca o tinham visto como Hitchcock o pensara. A saber: no esplendor de um grande ecrã, para mais no formato “VistaVision”, desenvolvido pelos estúdios da Paramount a partir de 1954, respondendo à concorrência do “CinemaScope” (Fox).
Não são questões banalmente técnicas que estão em jogo. Quando Hitchcock filma o seu par na geometria dos espaços largos de São Francisco ou se concentra no detalhe do cabelo enrolado de Kim Novak, a dimensão daquilo que nos é mostrado não é indiferente. Vertigo pertence ainda a um imaginário clássico que, no nosso tempo, muito por acção de discursos jornalísticos sem memória, foi sendo substituído pela contemplação beata dos “efeitos especiais”. De facto, no plano da sofisticação técnica, não há na história do cinema muitos autores com a obstinação, o rigor e a capacidade inventiva de Hitchcock. O certo é que a sua herança decorre de uma crença militante nos poderes do cinema como retrato íntimo da experiência humana, transfigurado em acontecimento maior que a vida. Finalmente, James Stewart e Kim Novak regressam ao ecrã que lhes pertence, devolvendo-nos também a dimensão exacta da nossa vulnerabilidade.