Envolvendo três-cineastas-três, Cloud Atlas é um dos mais ambiciosos projectos da recente produção cinematográfica em língua inglesa, curiosamente ligado ao contexto da indústria alemã — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Novembro), com o título 'Seis histórias cruzadas refazem a aventura humana'.
Alguns projectos cinematográficos nascem de uma ambição desmedida que decorre, não apenas dos meios de produção envolvidos, mas das características da história que se quer contar. Assim acontece com o espectacular Cloud Atlas, baseado no romance homónimo de David Mitchell, finalista do Booker Prize de 2004 (cujo vencedor seria A Linha da Beleza, de Allan Hollinghurst).
Trata-se de contar, não uma história, mas seis! As suas peripécias envolvem os contextos mais contrastados, desde a exploração dos escravos numa ilha do Pacífico do Sul em meados do século XIX, até um mundo pós-apocalíptico nascido de uma hecatombe planetária ocorrida no ano 2321, passando pelas atribulações de um editor literário, no actual Reino Unido, que publica o livro de um gangster...
Para concretizar o projecto, o cineasta alemão Tom Tykwer (autor da versão cinematográfica do “best-seller” O Perfume e do “thriller” The International) começou a trabalhar com os irmãos Wachowski, Lana e Andy, lendários criadores da trilogia Matrix. Em princípio, tendo os Wachowski comprado os direitos de adaptação do livro seria apenas uma colaboração na escrita do argumento. O certo é que a imensidão das tarefas envolvidas acabou por decidi-los a partilhar a realização. Daí esta raridade: Cloud Atlas é um filme assinado por três cineastas.
Tendo em conta que uma grande parte do orçamento de cerca de 80 milhões de euros é de origem alemã, a rodagem concentrou-se nos míticos estúdios alemães de Babelsberg (com cenas exteriores ainda na Alemanha, em Dusseldorf, e também na Escócia e na ilha espanhola de Maiorca). Foi um processo de enorme complexidade humana, técnica e logística, até porque, antes dos estúdios americanos da Warner mostrarem interesse em assegurar a distribuição de Cloud Atlas nos EUA, vários foram os momentos em que se encarou seriamente a hipótese de cancelar todos os trabalhos.
Segundo rezam as crónicas, Tom Hanks, um dos actores principais, foi dos que se manteve fiel ao projecto, nunca desistindo da sua concretização. E compreende-se que assim seja. Para além do desafio narrativo que Cloud Atlas envolve, este é também um objecto cinematográfico que, mesmo apoiando-se numa tecnologia de enorme sofisticação, confia o essencial das suas emoções ao labor específico dos actores, a ponto de alguns surgirem nas várias histórias parcelares. Assim, Tom Hanks, Halle Berry, Hugo Weaving, Jim Sturgess e Hug Grant têm, cada um deles, seis personagens a seu cargo, num processo de transfiguração dramática e física (por vezes, à beira do irreconhecível) que pode ajudar a definir a ousadia temática do filme.
Trata-se, afinal, de criar uma teia de relações que ilustre o princípio existencial e filosófico que está condensado na frase promocional do filme: “Passado, presente, futuro, tudo está ligado”. Num certo sentido, perpassa por Cloud Atlas uma discreta sugestão de reencarnação: cada uma das nossas vidas seria o desenvolvimento de uma outra vida, de alguém mais ou menos distante e desconhecido. Mas não é um drama religioso. É antes um retrato da infinita epopeia da humanidade. E da tenacidade dos valores humanistas.