Jonathan Harvey (1939-2012) deixou-nos esta semana após prolongada doença neurológica. Hoje recordamos aqui aquela que foi a sua última edição discográfica em vida: a estreia, num CD duplo, da ópera Wagner Dream (ed. Cypres), numa gravação sob direção de Martyn Brabbins.
Em janeiro deste ano, por alturas da muito aguardada estreia britânica de Wagner Dream (ópera que teve estreia mundial no Luxemburgo em 2007), um artigo publicado pelo Guardian referia que era o próprio compositor Jonathan Harvey quem identificava as três maiores qualidades que a grande música deve refletir: liberdade, luz e amor. Qualidades que ele mesmo não se atreveria nunca a apontar à sua música. Mas que, e como muito bem o jornalista então apontava, as tem. Wagner Dream, que acabou registada na história como a sua última ópera, teve edição discográfica em março deste ano. Na semana em que chegou a notícia da morte do compositor, a evocação deste lançamento aqui fica, em jeito de homenagem.
No booklet que apresenta a gravação, Jonathan Harvey deixa claro o encontro entre dois mundos que descobrimos em Wagner Dream. Um deles é o mundo do romantismo “com o seu paradigma da procura do conhecimento através de uma intensidade emocional fundida com uma psicologia profunda”. O outro, o do budismo e do pensamento oriental “com as suas análises sobre felicidade e dor focadas na mente”. Centrada no último dia de vida de Richard Wagner, em fevereiro de 1883 (em Veneza), a ópera leva-nos ao encontro de uma obra na qual o compositor alemão trabalhara fragmentariamente nos anos 50 do século XIX mas que deixara por concluir (apesar de ter sido anos mais tarde incluída num programa de atividades que o compositor apresentou a Luis II da Baviera). Em Die Sieger (a ópera deixada incompleta) expressava-se o profundo interesse (e conhecimento) de Wagner sobre o budismo. Uma demanda espiritual com afinidades com os interesses partilhados por Jonathan Harvey, que assim, através de Wagner, constrói uma história com vários planos reflexivos sobre uma narrativa relativamente simples, que abre espaço para a memória de Die Sieger numa visão que o compositor tem breves instantes antes da morte.
Convenhamos que nem as temáticas nem as figuras evocadas são novidade na música de Jonathan Harvey. Não só foram várias as obras suas nas quais o budismo marcou presença temática central (como se ouviu em Bakhti and The Path of Devotion ou Buddhist Songs) como o cruzamento deste universo com o de Wagner tinha já surgido em Wagner Dream, The Summer Cloud’s Awakening, obra coral que juntava sopros e electrónicas apresentada em 2001. A ideia para a ópera que este ano chegou a disco partiu desta mesma obra de 2001, o processo de gradual evolução das formas evoluindo ao longo dos anos seguintes na sequência da encomenda de novos elementos feita em 2003 pela London Sinfonietta. Novas partes (na verdade interlúdios, usando elementos electrónicos, e mais uma cena) surgiram mais tarde, estreadas umas em Berlim (2005), outras em Paris (2006). Parte do trabalho decorreu num dos estúdios do IRCAM (onde Harvey desenvolveu importante trabalho nos anos 80), fazendo assim de Wagner Dream uma obra que quase podemos entender como uma síntese de linhas de interesse temático e musical do compositor.
Primeira gravação de Wagner Dream, a edição apresentada este ano pela Cypres junta cantores (entre os quais Claire Booth e Gordon Gietz), atores (como Johan Leydsen, que veste a pele de Wagner) e músicos em volta desta ópera em nove cenas, com libreto de Jean-Claude Carrière. O Ictus Ensemble é aqui dirigido por Martyn Brabbins, num trabalho que conta ainda com a colaboração de Gilbert Nouno, do IRCAM.