Uma das mais estimulantes séries de lançamentos discográficos do nosso tempo está a mostrar de forma bem clara que a velha noção de frontera entre géneros musicais está tão derrubada como o Muro de Berlim. Este texto é parte de um artigo publicado na edição de 24 de novembro de 2012 do suplemento Q., do DN, com o título ‘Quando a música do pasado ajuda a inventar a música do futuro.
O alemão Moritz von Oswald foi o convidado para criar o volume 3. Espontaneamente convidou a colaborar consigo Carl Craig. O pedido original visava a utilização de uma gravação de Herbert Von Karajan, mas desde logo o musico alemão deixou claro que gostaria de poder trabalhar a partir de gravações multipistas de forma a poder utilizar, com mais volatilidade, o registo dos vários instrumentos. As gravações, com estas características, das três obras que pretendiam usar existiam. Eram elas a Raposódia espanhola e o Bolero de Maurice Ravel e a versão com orquestração deste mesmo compositor para Quadros numa exposição de Modest Mussorgsky.
Começaram a trabalhar em Berlim, ouvindo as gravações originais das três obras, que foram registadas num período entre 1985 e 87 e reunidas num único álbum da Deutsche Grammophon (DG 439 0132). Dessa primeira sessão resultou um plano de trabalho que lançou Mortitz Von Oswald numa etapa de separação e arrumação dos elementos musicais, procurando isolar as contribuições de certos instrumentos ou grupos de instrumentos. Continuaram a trabalhar em Detroit (onde vive Carl Craig), a cidade-berço do techno. A estes arquivos sonoros devidamente catalogados juntaram então outros instrumentos, nomeadamente velhos sintetizadores analógicos, caixas de ritmos, vários instrumentos de percussão, mais tarde um piano (interpretado por Kevin Sholar) e um contrabaixo (por Marc Muellbauer). Como descreve o texto de Thomas Meinecke, que lemos no booklet deste disco editado em 2008, improvisaram ainda um prelúdio “durante o qual sons e padrões foram criados, reminiscentes das colaborações de Brian Eno há cerca de 30 anos com o duo electrónico alemão Cluster”, que representaram um importante episódio na afirmação das visões e identidade do kraut rock. Só depois entra em cena uma imagem sonora que nos é familiar: o motivo repetitivo do Bolero de Ravel, que aos poucos se dilui no corpo que começa a emergir, compreendendo-se a sua revisitação não apenas pelas características rítmicas que assim imprime à nova obra que aqui nasce, como referência citada. Afinal, Moritz Von Oswald defende que o Bolero foi “a primeira composição clássica com um loop rítmico sobre o qual é construída uma melodia”.
Ao contrário das breves reflexões em volta de motivos (ou de elementos maiores) de obras que haviam caracterizado os dois primeiros volumes da série, a parceria de Moritz Von Oswald e Carl Craig neste terceiro volume optou por criar uma re-composiição de facto. A obra que criaram, em sessões de trabalho ao longo de vários meses, entre Berlim e Detroit, juntando ideias dos dois músicos aos pontos de partida encontrados em gravações de peças de Ravel e Mussorgsky, emerge em disco como um corpo uno, com identidade e personalidade. Além de um prólogo e de um interlúdio (sensivelmente a meio da peça, onde arrumam sones e efeitos, como que a preparar uma nova etapa), a obra divide-se em seis andamentos, o sexto (mais minimalista) representando uma definitiva partida para uma ideia de composição feita de cortes, colagens e repetição, como que a afirmar este método de trabalho não como uma mera revisitação de memórias em nova moldura, mas um espaço de invenção musical do presente. Convenhamos que após os dois primeiros volumes é neste terceiro que a série Re-composed deixa de ser uma celebração moderna do catálogo da Deutsche Grammophon para colocar afinal a editora junto de etiquetas como a Kompost, Warp ou (Lindstrom) na linha da frente da atual invenção musical na área das electrónicas.
A capa do terceiro volume da série Re-Composed, co-assinado por Moritz von Oswald e Carl Craig.