THE RING (1927) |
A revelação de uma cópia restaurada de um clássico mudo de Alfred Hitchcock reflecte uma conjuntura precisa: há novas atitudes (e novas estratégias industriais e comerciais) para lidar com as memórias do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Novembro).
Por estes dias, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (entidade que atribui os Oscars) apresenta em Los Angeles a cópia recentemente restaurada de um dos filmes mudos de Alfred Hitchcock: The Ring (1927), um melodrama tendo por pano de fundo o universo do boxe. Marcada para o Beverly Hills Theatre (29 Nov.), a projecção deste clássico possui um exemplar valor simbólico. A saber: a memória cinéfila apenas pode persistir e revalorizar-se através de um confronto directo com as obras que, pelas mais diversas razões, ajudam a definir os temas, as tendências e as próprias fronteiras da história do cinema.
Em boa verdade, o evento transcende qualquer relação banalmente pitoresca com o “passado”. E pode simbolizar a importância do labor de todos os arquivos fílmicos e cinematecas (incluindo, claro, no caso português). Desde logo porque envolve diversas entidades cuja simples identificação nos pode ajudar a perceber a internacionalização deste misto de urgência e paixão com que passou a ser encarada a preservação do património cinematográfico. Naturalmente, a recuperação de The Ring tem as suas raízes na pátria do cineasta. Mais concretamente, a nova cópia integra o projecto do British Film Institute designado por “Rescue the Hitchcock 9” (à letra: 'salvem os 9 de Hitchcock'), visando a recuperação dos seus nove títulos mudos. A sua estreia ocorreu recentemente no Festival de Londres, com uma nova partitura musical composta pelo músico de jazz e hip-hop Soweto Kinch. O financiamento do restauro envolveu diversas instituições, incluindo o StudioCanal (entidade americana de raízes francesas), a Film Foundation (fundada por Martin Scorsese) e a Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood (responsável pela atribuição dos Globos de Ouro).
Na prática, isto significa que as mais diversas entidades – umas ligadas aos circuitos especificamente culturais, outras com importantes ramificações industriais e comerciais – estão a valorizar a possibilidade de os públicos contemporâneos acederem a um conhecimento real do património cinematográfico. E utilizo a palavra “real” como clara sugestão de contraste, nem que seja por ironia, com as alternativas “virtuais” (computador, Net) hoje em dia tão abrangentes e, por vezes, tão simplistas.
De facto, creio que aquilo que está em jogo excede a mera questão museológica da defesa e conservação dos objectos fílmicos. Trata-se também de revalorizar a condição clássica de espectador – e de espectador que vê filmes em salas escuras. Nos tempos que correm, marcados pelo tratamento do cinema como “conteúdo” mais ou menos descartável de muitas opções televisivas de programação, este é um tipo de atitude que resiste à banalização da escrita e do património cinematográfico. Heroicamente. Didacticamente.