O documentário ‘O Cerco de Leninegrado’ foi recentemente lançado em DVD entre nós pela Alambique. Este texto foi originalmente publicado no DN Online com o título ‘O regresso ao cerco de Leninegrado’.
A ideia não será naturalmente a de nos iludir e dar a entender que o realizador estava lá, de câmara na mão, olhando e registando. Mas, integralmente feito de imagens de arquivo que Sergei Loznitsa encontrou em Moscovo, O Cerco de Leninegrado respira um sentido de verdade que encara um lugar, constrói uma narrativa e nos dá a sentir a tragédia que ali aconteceu. A primeira razão pela qual o realizador não poderia nunca ter estado em Leninegrado, durante o cerco que durou 900 dias, entre setembro de 1941 e janeiro de 1944, deve-se ao simples facto de o realizador ucraniano Sergei Loznitsa ter nascido 20 anos depois do levantamento do cerco. Um dos mais dramáticos capítulos da história da II Guerra Mundial, o cerco de Leninegrado afirmou-se também como um dos mais célebres episódios de resistência aos invasores alemães e já conheceu expressão nas artes quer através da célebre Sinfonia Nº 7 de Shostakovich (estreada em Samara, em março de 1942) ou no espantoso Fome, novela de Elise Blackwell que entre nós teve edição pela Livros de Areia.
Loznitsa ordena sob arrumação cronológica as imagens que encontrou e escolheu, criando um arco narrativo com partida nos tempos que antecederam a aproximação dos invasores (onde vemos uma cidade preparando-se para resistir) e o dia da libertação, sob festa e fogo de artifício quase três anos depois. Sem palavras, o filme conduz-nos, sem pressa (dando aos planos o tempo necessário para que nos permitam um olhar atento), mergulhando numa espiral progressivamente mais dramática, ao mesmo tempo revelando uma cada vez maior habituação dos habitantes às rotinas de morte da tragédia ao seu redor. O olhar intenso com que transeuntes se juntam para ver soldados alemães capturados, que desfilam pelas ruas da então Leninegrado (hoje novamente São Petersburgo) contrasta com a absoluta indiferença que os transeuntes vão mostrando para com os cadáveres que, no pico do inverno, vão encontrando caídos pelas ruas da cidade. Nota ainda para o cuidado, mas discreto, trabalho de som, que constrói uma banda sonora que ajuda a vincar uma lógica sequencial às imagens que, sem palavras, afinal são aqui a voz que nos conta uma história.