quinta-feira, novembro 01, 2012

A cantora... e o dragão

Tori Amos é um dos nomes maiores da música popular dos últimos 20 anos. Em 2011 encetou uma ligação com a Deutsche Grammophon pela qual já editou dois álbuns. 20 anos depois da sua estreia a solo, enfrenta em ‘Gold Dust’ o corpo de uma orquestra. E agora prepara a estreia de um musical para o Royal National Theatre. Este texto é uma versão acrescentada de um artigo (que parte de uma entrevista com a cantora) publicado na edição de 29 de outubro do DN com o título ‘Para Tori Amos chegou a hora de montar o dragão’.

Para quem conheceu o piano como principal parceiro durante anos a fio, cantar frente a uma orquestra é, para Tori Amos, como “montar um dragão”. A cantora, que este mês protagonizou uma digressão seguindo as sugestões das sonoridades despertas pelos dois álbuns que já editou pela Deutsche Grammophon, vincou ao DN o jogo de comparações. A orquestra, diz-nos “é o dragão e o maestro o seu domador”. E a cantora?... “Bom, se conseguir andar lá em cima, equilibrando-se nos seus saltos altos, tudo correrá bem”...

Tori Amos gosta de usar imagens nas palavras com que fala de si e da sua música. Mas é direta quando reconhece que os álbuns que editou antes de 2011 “não se ajustariam à editora” que, sabemos, é uma referência reconhecida nos espaços da música clássica. A sua ligação à editora, que originou além do novo álbum de versões orquestrais Gold Dust um outro disco, Night of Hunters, no ano passado, começou com o desafio para criar variações de obras de compositores da tradição clássica ocidental que esse disco de 2011 nos mostrou. “Inicialmente fiquei intimidada com a ideia de fazer essas variações”, confessa. Mas enfrentou os medos. “Estudei, tentei ouvir muita música clássica, contando com a ajuda de um musicólogo”, diz, referindo-se a John Philip Shenale, um velho colaborador (que aqui, como no novo Gold Dust, assinou os arranjos). O novo disco surgiu mais de um feliz acaso. Tori Amos preparava versões com orquestra para um outro desafio (o de um concerto), quando da editora chegou a sugestão para que se gravasse o que estava a acontecer, o álbum surgindo do entusiasmo e confiança entretanto gerados.

'Gold Dust' (2012)
Ao reencontrar canções que compôs ao longo de 20 anos Tori Amos pode constar que é uma voz invulgarmente inspirada como intérprete e compositora. “Tenho musas”, diz-nos. “Musas que me guiam”... Mas reconhece que muita da sua inspiração vem de uma forma atenta de ver o mundo, de comunicar, e até mesmo de falar sobre a sua própria obra. “Pode acontecer estar num aeroporto e, de uma conversa ou de algo que acontece, surgir uma experiência, que se pode relacionar com uma canção... E uma ideia pode daí desenvolver-se rumo a uma nova composição”, explica. A cantora acredita que, na verdade, a canção “já existe” em si. “Tenho apenas de a caçar”, descreve usando nova imagem. A “caça” é que pode por vezes ser um jogo “frustrante” sobretudo quando apresenta primeiras formas ao marido, com quem trabalha há anos, e este lhe responde que “ainda não está lá...” E isso, deixa bem claro “às vezes é difícil de ouvir”.

A dele é, como entendemos pelas palavras de Tori Amos, uma opinião que tem em conta. Tori Amos vê as canções “como uma porta para a nossa vida pessoal”, mas curiosamente o seu marido “não se envolve no significado das canções”. Tori tenta “manter os detalhes como coisa privada” e, tal como ao marido, deixa que “as pessoas presumam sobre o que é que as canções falam”. Para si as canções “têm depois a sua própria vida”, tanto que aceita que as pessoas que as escutam “têm uma relação com essas mesmas canções” e não com a cantora.

Dá até como exemplo a canção Mary Jane, que em 2009 gravou no álbum Abnormally Attracted to Sin. “É uma canção sobre um sobrinho meu, e ele ficou orgulhoso do facto de ter escrito a canção. Mas não é, como houve quem dissesse, uma canção sobre o facto dele ter saído com uma tal Mary Jane, porque é na verdade sobre fumar erva”... Tori Amos esclarece que por vezes muda os nomes das pessoas de quem fala ou que a levaram às canções. E assim garante também uma vida própria a essas personagens que canta.

Gosta contudo de ouvir o que os outros dizem e interpretam sobre o que canta. “Por vezes as pessoas vêm ter comigo e revelam-me perspetivas que nunca tinham visto e que podem até mesmo conduzir-me a outra canção”, como de resto aconteceu ao escutar (e a descobrir) novos pontos de vista nas novas versões das velhas canções que agora gravou em Gold Dust. “A interpretação abre perspetivas e leva a uma canção nova... É como se fosse um sistema solar”, com tudo devidamente arrumado e em sucessivos ciclos, sugere.

'Night of Hunters' (2011)
E depois de dois discos orquestrais poderemos esperar um futuro álbum mais na linha de discos anteriores, no catálogo que agora a acolhe?... Tori não parece preocupada. Os concertos com orquestra foram gravados para possível edição em 2013, revela. “Esses são os planos para o próximo ano” sublinha, alertando para o facto de as versões de concerto serem “diferentes das do álbum”. A cantora diz-nos que tem uma boa relação com os profissionais da Deutsche Grammophon com quem hoje trabalha. “Estão muito abertos às minhas ideias”, confirma. E o seu próximo projeto, “que não será clássico”, será um musical para o Royal National Thatre, The Light Princess, baseado num conto de George McDonald e no qual trabalha há cinco anos. “Estudei todos os musicais que pudesse agarrar”, confessa a cantora que gosta igualmente de conversar com músicos de gerações mais novas com os quais diz que tem sempre muito para aprender. E, acrescenta: “tanto a ligação à editora como o projeto do Royal National Theatre mudaram a minha música”, diz. “Tudo está ligado”.

Entre os seus projetos em mãos neste momento está o desenvolvimento de uma etiqueta discográfica que, explica-nos está entregue a um “think tank” que Tori Amos diz ter consigo a trabalhar neste momento, e que envolve figuras como a sua filha ou Neil Gaiman. “Tenho de me focar no meu trabalho e não me deixar distrair”, confessa. “Tenho de me manter como música e com os pés no chão”. Mas este projeto de ter uma pequena editora entusiasma-a. Ali pretende lançar artistas “que possam não se ajustar às assinaturas das grandes editoras no momento”. Uma “avenida para desenvolver novos artistas, com tempo, sem pressa”, como ela mesma descreve. “Como uma corrida de tartarugas”. Também ela correu como uma, até trazer a sua carreira ao patamar presente. “Mas com o tempo, a tartaruga transformou-se numa senhora lagarto”, conclui.