Estamos na península de Chukotka. Onde? No extremo nordeste da Rússia, o mar ártico a Norte, o Alasca a Leste... Talvez morem ali os russos de quem Sarah Palin dizia que quase via do quintal (enfim, não falemos de observações infelizes do que de pior o mundo da política nos dá no nosso tempo)... Estamos em concreto numa ilha, afastada de tudo e todos onde além dos ursos polares e das trutas pouco mais encontramos senão dois habitantes. E é em volta dos dois que o realizador Alexei Popogrebsky faz nascer em How I Ended This Summer (título traduzido para inglês) um filme que, sem procurar caminhos do postal documental, mostra como sabe olhar o espaço para dele fazer mais que apenas o “fundo” cénico em volta do qual evolui uma narrativa.
Convém dizer que a paisagem é desolada, mas imponente. Dos olhares sobre o mar, as falésias de xisto, as praias pedregosas, a tundra a câmara mostrando-nos não apenas as formas, mas também o sentido de solidão, de isolamento e, sobretudo, distância, que a paisagem sugere. É assim, longe, que vivem dois homens. Não sabemos há quanto tempo ali estão, mas depreendemos que, por ali, as temporadas de trabalho não se medem ao ritmo da semana em clima urbano, com horário das nove às cinco e as folgas logo a seguir. Ali trabalha-se ininterruptamente, dormindo entre tarefas. E só não é de sol a sol porque, em pleno verão ártico, o sol não se põe nunca, tocando por minutos a linha do horizonte para voltar logo depois a subir... Nesta região estão instalados alguns postos de observação meteorológica cujas observações permitem recolher dados sobre as alterações climáticas. Mas não há uma agenda ecologista no texto (talvez subliminar, no contexto, mas mesmo assim seremos nós a querer ver no filme o que o realizador talvez nem sequer tenha pensado que por lá passava). Vemos apenas que o dia a dia daqueles dois homens vive de incessantes medições em estações e dados de telemetria, que enviam de tantas em tantas horas para uma estação maior, supomos que no continente... Não falam dos fins a que se destinam os valores que colhem. De resto, só os vemos a ditar números. Nem sabemos bem do quê. Pressão atmosférica? Temperatura? Albedo?... O certo é que pouco resta aos dois senão o cumprir dessa rotina, ocasionalmente com pontos de fuga nas horas vagas.
Eles são Gulybin (interpretado por Sergei Puskepalis) e Danilov (Grigory Dobrygin). O primeiro um veterano já conhecedor do espaço, do trabalho e transformado em servo de uma rotina que não ousa romper, a mais séria das suas infrações sendo ocasionais passeios de barco a uma laguna onde pesca trutas. O segundo é mais jovem, supomos que ainda estudante universitário (está ali com o fim de escrever um ensaio com o título do próprio filme), e mora nos antípodas do comportamento do primeiro. Agarra-se a um radar como se fosse um carrocel, salta por cima de bidões de fuel, como quem treina para os Jogos Sem Fronteiras, usa brinco, ouve rock’n’roll por uns headphones que raramente esquece quando sai da estação. O que esquece, por vezes, são os cartuchos da espingarda que não deve nunca deixar no armário quando se afasta um pouco, não vá ter um encontro imediato com um urso... Que, pelo que o mais velho conta, não são coisa fofinha de peluche e já mataram um colega numa campanha anterior.
A narrativa entra no quotidiano minimalista destes dois homens com o ritmo com que a vida se faz ali. Lentamente. Numa das sortidas para pesca de Gulybin, Danilov recebe notícias trágicas da família do colega. Teme passar-lhe a notícia. E da omissão cresce um desconforto, que atingirá proporções desmedidas. How I Ended This Summer pode refletir assim sobre a mutação de comportamentos que o isolamento por vezes desencadeia. Mas o seu foco está antes na forma como, afastados dos lugares onde a população em massa vive, dois homens podem ser, cada qual, o paradigma de uma Rússia. A mais antiga, vergada a regras e conservadora. Uma nova, desafiante, mas que não parece ter rumo definido...
O filme aceita heranças de uma linguagem mais contemplativa característica de alguns grandes cineastas russos (o realizador cita O Espelho de Tarkovsky como um episódio que mudou a sua forma de ver o cinema e o fez querer criar filmes), mas combina-as com outras dinâmicas, a música que Danilov escuta sugerindo por vezes outro sentido no olhar. O filme foi premiado em 2010 em Berlim, atribuindo ursos de prata aos atores e ao diretor de fotografia. E sublinhe-se o trabalho notável deste último, numa produção que, rodada in loco numa campanha de três meses a nove horas de avião de Moscovo e mais valentes horas de estrada, sempre soube que rodar em película seria impossível (como veriam as rushes?)... No Q&A que se segue ao filme na edição inglesa em DVD alguém questiona o realizador sobre um tão evidente crédito final ao responsável pela correção de cor, ao que Popogrebsky explicou o intenso trabalho de ensaios e experiências que antecederam a rodagem que lhe permitiram depois, com os meios que levou para tão longe, conseguir semelhantes resultados (veja-se o plano final e entenda-se a sua preocupação neste departamento). Pena, apenas, que tão magnífico filme tenha passado tão longe de nós. Afinal, Lisboa fica a cinco horas de avião de Moscovo. Mais perto que a capital russa da região de Chukotka.