quarta-feira, agosto 22, 2012

Marcelo ou o labor da norma

FRANCIS BACON
Estudo do corpo humano segundo Ingres
1984
* Como tem sido amplamente divulgado e comentado em espaços da Internet, o comentador Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) enganou-se no seu comentário na TVI, a 19 de Agosto, ao atribuir ao governo de José Sócrates uma medida (corte nos subsídios de Natal) que, de facto, foi posta em prática pelo governo de Pedro Passos Coelho. É certo que, no final desse mesmo espaço, MRS apresentou desculpas pelo sucedido, o que não impediu que o erro se tivesse transformado numa verdadeira virose comunicacional (a que este comentário, inevitavelmente, também pertence), gerando as mais variadas observações, integrando temas que vão desde as especulações sobre a saúde mental do comentador até à manipulação política que lhe é atribuída. Eis os momentos chave:


* No terreno das reacções verificadas, e mesmo não querendo simplificar a sua diversidade numa significação única e unilateral, foi-se instalando um subtexto que vale a pena referir — sobretudo porque é um subtexto que apela a uma sanção conjugada da intervenção política e do espaço jornalístico. Assim, segundo tais reacções, estaríamos a assistir a uma generalizada cobardia mediática, com escassez de vozes para "denunciar" o erro "escandaloso" de MRS. Mais do que isso: por vezes, fica-se com a sensação de que, em Portugal, nunca ninguém, alguma vez, exprimiu algum ponto de vista sobre o discurso televisivo de MRS.

* Esta estado de coisas — marcado por uma ideologia do permanente apelo à denúncia — é, infelizmente, revelador da generalizada pobreza política do comentário político (passe a redundância). Sobretudo porque, na sua puerilidade, se confunde com a banal retórica argumentativa, pitoresca e moralista, do próprio discurso de MRS. Mais do que isso: demonstra que quase toda a esquerda se acomodou a esse infeliz imaginário da denúncia permanente em que, hoje em dia, se equivalem repórteres de televisão e porta-vozes do Bloco de Esquerda. A linha de pensamento que os une é esta: nada do que acontece merece ser pensado, nem sequer descrito, a não ser como pretexto para denunciar alguma coisa... Veja-se (aliás, ouça-se) o que com isso, e sobre isso, tem feito esse notável programa radiofónico de comédia que é o Portugalex (por certo um dos mais ricos espaços de genuína intervenção política que nos resta). Cito o recente e delicioso comentário à hipótese de uma direcção bicéfala do BE: "Última hora: Louçã defende agora uma liderança com sete cabeças: um homem, uma mulher, um transexual, um anão, um africano, um cidadão de etnia cigana e um albino canhoto." Hélas!

* Que importa, então, tentar situar? A noção simples, mas essencial, de que ninguém, incluindo MRS, deve ser sacrificado no "tribunal" grosseiro da praça pública, todos os dias assombrado pela fúria moralista do discurso televisivo dominante (o mesmo em que, obviamente, encaixa a intervenção política do próprio MRS). Pode-se discutir, infinitamente e indefinidamente, se MRS foi mais ou menos "honesto" no seu erro... Pode, sem dúvida. Há muitos debates televisivos, e também muitos programas de reality TV, que se baseiam nesse tipo de policiamento dos costumes dos outros. E "ninguém", sobretudo quase ninguém de esquerda, se empenha em lidar com a tremenda degradação cultural e educativa que isso representa.

* Face ao discurso televisivo de MRS, o que seria interessante — e, a meu ver, importante — discutir passa por questões incomparavelmente mais complexas e motivadoras do que a "enésima" especulação sobre a herança de José Sócrates (tema sobre o qual, não poucas vezes, esquerdas e direitas se equivalem na mesma preguiçosa conversa de café...). Eis alguns temas possíveis:
1 - a redução do trabalho político a um anedotário fulanizado.
2 - a promoção demagógica do comentário político a discurso "científico" inquestionável.
3 - a necessidade imperiosa de pensar a televisão, não como veículo passivo do(s) discurso(s) político(s), mas sim como elemento nuclear da vida política de toda a sociedade.

* Este último ponto é tanto mais decisivo quanto, independentemente de intervenções pontuais de algumas personalidades, os partidos políticos portugueses têm demonstrado, desde o 25 de Abril, uma lamentável indiferença pelo espaço televisivo e pelos seus permanentes efeitos de formatação da vida social. Exemplo? Para quê pôr um sorriso paternalista para defender o cinema português, ao mesmo tempo que se recusa qualquer reflexão sobre o efeito normativo (narrativo & económico) de 34-anos-34 de poder absoluto da telenovela como modelo de ficção dominante na sociedade portuguesa?

* No mesmo dia em que cometeu o seu erro factual sobre José Sócrates, ao analisar (?) um discurso do primeiro-ministro, MRS introduziu, a certa altura, o seguinte "argumento" [ver link 'TVI': 23m 00s]:

>>> "Eu como tinha metido na cabeça o que ia ser o discurso de Passos Coelho, fez-me lembrar o que se passou comigo noutro dia num supermercado..."

Entre os que ficaram chocados com o erro de MRS sobre José Sócrates, quem, como, onde manifestou algum ligeiro frémito de reacção a esta indigência argumentativa promovida a discurso professoral sobre a política portuguesa? Ninguém.
Conclusão? Nenhuma. A não ser que vivemos num país em que a ideologia político-televisiva dominante encara esta miséria de pensamento como coisa normal. Queixam-se de quê?