O recente lançamento de Cavalo de Guerra em DVD e Blu-ray permite-nos reencontrar as singularidades do cinema de Steven Spielberg: uma arte de reencontro com o classicismo de Hollywood, sempre conduzida pela orfandade simbólica dos seus heróis – este texto foi publicado no suplemento "QI", do Diário de Notícias (14 Julho), com o título 'A guerra interior de Steven Spielberg'.
No Verão de 2011, em Paris, nas primeiras entrevistas sobre o filme As Aventuras de Tintin – O Segredo do Licorne, de Steven Spielberg, a produtora Kathleen Kennedy (1) comentava o facto de o realizador ter dois títulos bem diferentes para estrear antes do final do ano. Assim, além da adaptação do herói de Hergé, Spielberg trabalhava na fase final de montagem Cavalo de Guerra, uma história tendo por pano de fundo a Grande Guerra de 1914-18.
Apesar de Spielberg ser um cineasta que encadeia projecto atrás de projecto, tratava-se de uma situação com algo de insólito, desde logo porque era sabido que Tintin, com a sua animação feita a partir de um registo prévio dos actores (performance capture), estava a implicar um complexo período de pós-produção. Em boa verdade, como a própria Kathleen Kennedy teve oportunidade de esclarecer, o envolvimento de Spielberg na realização de Cavalo de Guerra tornara-se possível num “intervalo” de Tintin, quando as demoradas tarefas de pós-produção lhe permitiam manter-se afastado do dia a dia dos estúdios.
Que tenha sido possível rodar Cavalo de Guerra desta forma (e em apenas 64 dias!), eis o que diz bem das qualidades dos recursos técnicos e humanos que Spielberg tem ao seu dispor. Mais do que isso: este é um filme que mostra de forma muito clara que, embora sendo um nome fortemente ligado à revolução tecnológica das últimas décadas (e aos seus emblemáticos “efeitos especiais”), o cineasta de Tubarão (1975), Os Salteadores da Arca Perdida (1981) e Guerra dos Mundos (2005) é também um criador que mantém uma importante relação simbólica com as matrizes narrativas enraizadas nos mestres clássicos de Hollywood, nomeadamente John Ford (2).
Baseado numa história infantil do inglês Michael Morpurgo (3), Cavalo de Guerra envolve uma revisitação das memórias do primeiro conflito mundial que não pode ser reduzida a uma mera recuperação do modelo tradicional do “filme de guerra”. Sendo Spielberg um exemplar retratista de heróis juvenis, podemos apostar que o facto de Cavalo de Guerra ser construído a partir do olhar de um adolescente terá sido decisivo na sua decisão de dirigir o filme (aliás, quando a Amblin adquiriu os direitos de adaptação, previa-se a contratação de um outro realizador).
Esta é a história do jovem Albert Narracott (Jeremy Irvine) e da sua obsessiva procura de um cavalo que, face às severas condições económicas, o seu pai se vê forçado a vender a um oficial do exército (a acção começa em 1912, em Devon, no sudoeste inglês). Mais do que uma crónica épica, Spielberg filma uma angústia inerente a muitos dos seus heróis: através da sua demanda pelos campos de batalha de França, Albert vive um drama que, no limite, vai decidir a sua própria inserção no território da família. Nesta perspectiva, ele está próximo da criança de O Império do Sol (1987), porventura o mais pessoal, e também mais perfeito, filme de Spielberg: este é um mundo de heróis feridos por uma estranha orfandade simbólica. Mesmo no palco dos mais violentos conflitos humanos, a sua guerra é sempre interior.
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1. KATHLEEN KENNEDY (n. 1953) – Produtora de alguns dos maiores sucessos da história do cinema americano, fundou, em 1981, com o marido Frank Marshall e Steven Spielberg, a Amblin Entertainment. E.T. (1982) valeu-lhe a primeira de sete nomeações para o Oscar de melhor filme. Partilha, com George Lucas, a presidência da Lucasfilm Ltd.
2. JOHN FORD (1894-1973) – Com uma filmografia de mais de uma centena de títulos, é um dos símbolos universais do cinema americano e, em particular, do western e do “filme de guerra”. Entre os seus trabalhos mais famosos, incluem-se Cavalgada Heróica (1939), O Homem Tranquilo (1952) e A Desaparecida (1956).
3. MICHAEL MORPURGO (n. 1943) – Autor de romances para jovens, poesia e peças de teatro, foi consagrado em 2003 com o “Children’s Laureate” (para escritores ou ilustradores de livros juvenis). Entre os seus títulos mais conhecidos incluem-se The Wreck of the Zanzibar (1995) e Kensuke’s Kingdom (1999).