Continuamos a publicação de um artigo originalmente apresentado no suplemento Q., do DN, a 19 de maio de 2012 com o título ‘O ano em que o mundo ouviu os Beatles e viu nascer os Stones’. Em 1962 os Beatles lançavam ‘Love Me Do’, o seu primeiro single. No mesmo ano, depois de um primeiro ensaio, os Rolling Stones estreavam-se num pequeno palco em Londres. 50 anos depois esses dois momentos moram na mitologia da música popular.
“A ideia do Brian [Jones] para formar uma banda era andar por aí a falar com tudo o que fosse músico”
(39). Quem o lembra é Bill Wyman, que durante anos foi baixista dos Rolling Stones e cujas memórias vividas entre a banda recorda na auto-biografia ilustrada
Rolling With The Stones. Estávamos em finais de abril ou inícios de maio de 1962 quando o guitarrista Brian Jones colocou na
Jazz News um anuncio a pedir músicos de
rhythm'n'blues. Ian Stweart
(40), um jovem pianista, foi o primeiro a responder. E o primeiro a chegar ao ensaio...
Na sua autobiografia
Life, Keith Richards recorda esse ensaio “para o grupo que se tornaria os Rolling Stones”, que teve lugar no Bricklayers Arm, “um pub chungoso no Soho”. Em maio de 1962. “O pub tinha acabado de abrir quando cheguei, acompanhado da guitarra. Empregada de bar típica, uma velha loira de maus modos, poucos fregueses, cerveja morta. Mal ela viu a guitarra, apontou para o primeiro andar. Oiço um
boogie woogie ao piano, um som incrível (...) Bastou isso para me sentir num outro mundo”, descreve o guitarrista
(41). Compareceram, além de Keith Richards e Ian Stwart, o guitarrista Brian Jones, Mick Jagger, o guitarrista Geoff Bradford e Brian Knight, estes dois últimos não se entendendo com as opções de Richards e Jagger e a sua vida nos (futuros) Stones ficando por ali. Ainda longe de ter fixado uma formação, o grupo (ainda sem nome) ia procurando descobrir-se a si mesmo.
Poucas semanas depois um primeiro concerto surge no horizonte. A banda de Alexis Korner (os Blues Incorporated), que tinha data agendada no Marquee, recebe um convite para uma emissão em direto na BBC. E tenta passar a data... Ao telefone Brian Jones acerta os detalhes fundamentais. E o nome?... Faz-se uma pausa, porque nome era coisa que ainda não havia com uma certeza definitiva... Keith Richards narra esse episódio com a intensidade daqueles momentos de resolução de um momento de ansiedade num fime: “Eis que o Muddy Waters salva a situação”
(42).
Rollin' Stone era o título da primeira faixa do disco
The Best of Muddy Waters. E como lembra no seu livro, tinham a capa mesmo à sua frente, “no chão”.
E assim, a 12 de junho de 1962, os recém-formados (e denominados) Rolling Stones estreiam-se no palco do mítico Marquee, em Londres, alertando Keith Richards para o facto de nessa noite o baixista ter sido Dick Taylor e o baterista terá sido Mick Avory “e não, como misteriosamente rezaria a história, o Tony Chapman”
(43). Mas o concerto não mudou as suas vidas. E no dia seguinte voltavam a um quotidiano bem distante do que as luzes da fama iluminam.
Keith Richard faz em
Life um retrato realista do dia a dia da banda nesses primeiros tempos. “Os Rolling Stones passaram o seu primeiro ano de vida a matar o tempo em bares, roubar comida e ensaiar. Por enquanto sermos os Rolling Stones só nos trazia prejuízo. O sítio onde vivíamos (o Mick, o Brian e eu) era uma nojeira. Edith Grove, nº 102 em Fulham. E mantê-lo uma nojeira tornou-se quase uma obrigação profissional: com tão pouco dinheiro não tínhamos alternativa. Mudámo-nos no Verão de 1962 e foi lá que enfrentámos o Inverno mais frio desde 1740”
(44)
A agenda de concertos era escassa em datas. E sem muito mais para fazer, Keith lembra que passavam tempo “a observar as pessoas, a estudar-lhes os comportamentos”. Por vezes, confessa em
Life, roubavam o que encontravam nos outros andares: “Quando as miúdas do rés-do-chão não estavam, vasculhávamos-lhes as gavetas, podia ser que encontrássemos umas moedas”
(45)
Como ele mesmo descreve, estavam “às apalpadelas” à procura de um som, “neste caso o dos
blues de Chicago ou o mais parecido com ele que” conseguissem: “duas guitarras, baixo, bateria e piano”. Tentavam ouvir todos os discos da Chess Records, uma referência maior dos
blues, a que conseguissem chegar. “Como toda a gente tínhamos crescido ao som do
rock’n’roll, mas foi pelos
blues que decidimos seguir”
(46) Keith e Brian “absorveram” a música de Jimmy Reed “até ao tutano”. Mas o guitarrista revela que, durante esse processo, Mick Jagger se sentia de certa forma excluído. Passava grande parte das suas horas na London School of Economics, onde estudava e não tocava então qualquer instrumento. “E foi por isso que decidiu pegar na harmónica e nas maracas” diz Keith Richards, que acrescenta que o vocalista se revelou então “um tocador de harmónica absolutamente fabuloso”
(47).
Keith arruma o que procuravam no quadro do seu tempo quando diz que os Rolling Stones “começaram por ser uma banda frágil” e admite mesmo que ninguém esperava que “levantassem vôo”. Eram: “antipop, antimúsica de baile”. E, reforça: só queriam ser “a melhor banda de
blues de Londres”
(48). Não acredita, porém, que os Rolling Stones “tivessem realmente coagulado se não fosse o Ian Stewart”. Foi, como confirma, o pianista quem lhes alugou as primeiras salas de ensaio; e era ele quem distribuía a agenda de trabalho aos músicos. “Para o resto da banda parecia tudo tão complicado. Não sabíamos nada, éramos uns atados. A banda nasceu da visão do Ian, além de ter sido ele a decidir quem é que a formaria”.
(49)
Ao longo do ano o grupo tinha já integrado a presença do baterista Charlie Watts
(50). E em dezembro de 1962, a “precisar” de um baixista permanente, Bill Wyman encontrou-se com a banda no Red Lion, em Sutton. Ele mesmo recorda o momento na sua autobiografia: “Comprei uma rodada de bebidas para toda a gente e ofereci-lhe cigarros (…) Brian e Keith mal falavam comigo. Mick perguntava-me se conhecia a música de muitos artistas negros. E os únicos de que tinha ouvido falar eram Fats Domino e Chuck Berry. Falei sobre os Coasters, Jerry Lee Lewis, Eddie Cochrane, Johnny Burnette, Lloyd Price e Sam Cooke. Mas a forma como olharam deu para entender que não estavam a gostar. Keith não gostava particularmente de Jerry Lee Lewis. Curiosamente, 15 anos depois, descobriu subitamente os discos dele e começou a tocá-los constantemente. E ainda o faz”
(51)
Ensaiaram, mas Bill Wyman, acabaria por descrever aquele momento como uma “zona sinistrada”. O segundo ensaio, dias depois, correu menos mal e a 14 de dezembro o baixista dava o primeiro concerto como membro dos Rolling Stones.
A 29 de dezembro, ainda sem um disco no horizonte (e com o primeiro single dos Beatles entretanto já transformado num relativo êxito), os Rolling Stones davam o seu último concerto de 1962 em Ealing. “Tinhamos a esperança, mas não a ideia de como, as nossas vidas iriam mudar nos doze meses seguintes”, recorda Bill Wyman...
(52) Mal sabendo que em menos de dois anos seriam, de facto, um dos nomes maiores da cena pop/rock mundial.
39 – in Rolling With The Stones, de Bill Wyman, pág 34
40 – Ian Stewart (1938-1985) Pianista e um dos fundadores dos Rolling Stones. Foi afastado da formação do grupo em 1963 mas manteve-se como road manager da banda e tocou como pianista nos seus discos.
41 – in Life, de Keith Richards, pág 98
42 – ibidem, pág 104
43 – ibidem, pág 105
44 – ibidem, pág 107
45 – ibidem, pág 109
46 – ibidem, pág 111
47 – ibidem, pág 116
48 – ibidem, pág 117
49 – ibidem, pág 118
50 – Charlie Watts (n. 1941) Baterista dos Rolling Stones desde janeiro de 1963. Tem discografia a solo desde 1987. O seu mais recente disco é The Magic of Boogie Woogie, de 2010.
51 - in Rolling With The Stones, de Bill Wyman, pág 40
52 – ibidem