segunda-feira, junho 25, 2012

"The Truman Show"... ou a histeria do futebol

Jim Carrey, THE TRUMAN SHOW (1998)
Jim Carrey em The Truman Show é o protótipo do modo como as televisões passaram a conceber cada um dos seus espectadores: militantemente ignorantes, compulsivamente "felizes"... As tendências dominantes da cobertura informativa (?) do Euro2012 não andam longe disso. E constituem um capítulo lamentável de um "patriotismo" sem pudor, avesso a qualquer forma de inteligência — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Junho), com o título 'O futebol como destino televisivo'.

Muitas imagens televisivas passaram a viver em regime de “des-responsabilização” discursiva. Que quer isto dizer? Não necessariamente que os respectivos profissionais sejam irresponsáveis (há boas razões para acreditarmos que a esmagadora maioria não é). Antes que a televisão promove, todos os dias, uma espécie de naturalização das suas próprias linguagens cujo principal efeito ideológico é: “Mostramos as coisas assim porque... as coisas são assim”. Ora, mais do que nunca, importa lembrar que as coisas nunca são “assim”, no sentido em que são também (sempre!) o modo como as mostramos, descrevemos, avaliamos e pensamos.
O Euro2012, por exemplo. Mais concretamente: a presença da selecção portuguesa no Euro2012. Há algum tempo que não se assistia a uma tão histérica abordagem, transformando um acontecimento obviamente importante (a presença de uma equipa portuguesa numa grande competição internacional) numa antologia de lugares-comuns em que o nacionalismo mais pueril se combina com a consagração de uma psicologia de bolso, quase sempre protagonizada por alguns repórteres que se assumem como sacerdotes de uma “transcendência” caricatural. Exemplos? São às dezenas, todos os dias. Registo apenas um (que, confesso, me siderou para além de tudo o que pudesse imaginar). Foi no dia posterior à derrota da Alemanha, com as banalíssimas imagens da chegada dos jogadores portugueses ao seu hotel. Ainda sob o efeito de uma lesão de evolução incerta, Nani passou rapidamente pelas câmaras, usando uns grandes auscultadores na cabeça. Porquê? Explicava o repórter em tom dramático: era um “sinal” de isolamento e preocupação... Quando a “análise” chega a este cúmulo de ridículo, tudo é possível. Isto é: a televisão não reconhece limites à sua formatação dos olhares.
Há uma moral demagógica que, com frequência, tenta resistir a qualquer reflexão sobre estas questões de linguagem. Assim, questionar a cobertura jornalística da selecção (quase incluindo as idas dos jogadores à casa de banho...) seria uma tentativa de diminuir e difamar as qualidades do próprio futebol português. Ora, mais uma vez, importa também lembrar que a reflexão proposta é totalmente exterior aos resultados conseguidos em campo. Dito de forma muito directa: mesmo que Portugal venha a vencer o Euro2012, isso não apaga o desastre comunicacional que tem sido a exaltação tristemente “patriótica” com que muitas abordagens televisivas massacram, durante pelo menos um mês, o país inteiro.
Dir-se-ia que nos querem fazer viver no mesmo delírio de “felicidade” a que a personagem de Jim Carrey era, literalmente, coagida nesse filme fabuloso, e muito pedagógico, que é The Truman Show/A Vida em Directo (1998), de Peter Weir. Como se a lógica dos reality shows tivesse ocupado todo o tecido social, reduzindo cada espectador a uma marioneta de um destino televisivo, sem alternativa.