sexta-feira, junho 22, 2012

"Libération": o grau zero da política

1. Em muitos aspectos, a crise política é uma crise de ideias (políticas) para dizer a própria crise. A começar pela aplicação da dicotomia "esquerda/direita" onde os aparelhos partidários (e a esmagadora maioria dos discursos jornalísticos) se refugiam como se aí encontrassem a quietude de uma identidade inquestionável...

2. Um dos efeitos mais curiosos, porque mais quotidianos, desse estado de coisas é o penoso esgotamento de todas as iconografias que insistem em dividir o mundo social em duas regiões (esquerda/direita, precisamente) que, supostamente, esgotariam todas as diferenças interiores desse mundo, ao mesmo tempo que produziriam o milagre de racionalizar todas as suas contradições individuais e colectivas. Exemplos? Veja-se os cartazes políticos que enxameiam as nossas ruas, repetindo até à exaustão clichés iconográficos e discursivos que, há muito, a voragem da história reduziu a memórias mais ou menos kitsch.

3. A primeira página do Libération (22 Junho) é uma interessante (e estimulante) confissão enraizada nesse esgotamento. Trata-se de reflectir sobre a austeridade francesa, agora gerida pela esquerda socialista, liderada por François Hollande. Podemos encontrar a sua motivação jornalística no editorial de Vincent Giret, intitulado 'Condições'. Aí se escreve, a abrir:

>>> Diremos, de boa vontade, com Régis Debray [foto], que "a economia do discurso não pode reduzir-se ao discurso da economia". Fazer crer que um mero punhado de números dramáticos — e bem reais —, lançados ao solo, bastariam para resumir o essencial do drama que enfrentam os grandes países ocidentais, é recusar ver e pensar a crise do projecto colectivo que, há trinta anos, corrói de forma implacável o poder público sem que quem quer que seja se tenha verdadeiramente preocupado (...)"

Que esta angústia, e o desencanto que arrasta, seja figurada pelas mãos, expectantes e hesitantes, do poder (são, creio, as mãos do próprio Hollande...), eis o que, quando même, envolve um simples e salutar desafio a muitas declinações iconográficas da esquerda, do socialismo (real ou utópico) e, em boa verdade, também da direita. O Libération consegue, assim, abrir espaço para uma espécie de grau zero da figuração política, tomando o Partido Socialista francês como tema primeiro mas, ao mesmo tempo, questionando muitas matrizes correntes de "visualização" do jogo político. Fazer jornalismo é também este risco de discutir a representação do mundo.