FOTO Tyler Anderson / National Post |
Esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (2 Junho), com o título ' "Cosmopolis" pode ser um sonho mas também um documentário ' — a conversa com David Cronenberg ocorreu em Cannes, durante o festival, a 24 de Maio, no Hotel JW Marriott.
Desde os tempos heróicos de Shivers (1975) até ao novíssimo Cosmopolis, baseado no romance homónimo de Don DeLillo e tendo como protagonista Robert Pattinson (herói da saga Twilight), David Cronenberg é um cineasta apostado em desafiar as fronteiras do ser humano. Os seus filmes lidam, de uma só vez, com as imagens do corpo e as funções da linguagem. Neste aspecto, mesmo não se considerando um cineasta "psicanalítico", reconhece na herança de Freud alguns instrumentos essenciais para lidar com a existência das suas personagens. Entrevistá-lo não é, em todo o caso, aceder a um discurso mais ou menos enigmático ou esotérico. Nada disso: Cronenberg fala dos seus filmes com a serena convicção de um cientista que vai fazendo o inventário do seu metódo e respectivas descobertas.
Tendo em conta o romance de Don DeLillo, Cosmopolis é um filme que podíamos imaginar em registos muito diversos, desde a ficção científica até à crónica quase realista. Como encontrou o tom adequado?
Uma coisa é certa: quando estamos a fazer um filme a partir de um livro, temos a consciência de estar a criar uma coisa nova. Os dois meios são muito diferentes, o filme nunca poderá ser igual ao livro: sabemos que irá nascer um objecto com alguma relação com o livro, mas também com uma vida nova.
Em boa verdade quando começamos, não sabemos como vai ser. Começa-se pelo argumento, claro, mas depois vêm todos os detalhes de design, casting, iluminação... a pouco e pouco começamos a vislumbrar a forma daquilo que estamos a fazer. Nunca sinto que sei tudo por antecipação – é como fazer escultura: é preciso ir sentindo tudo aquilo, todos os dias, e a pouco e pouco encontrar a forma exacta. No final, podemos ter criado qualquer coisa que, inclusivamente, nos surpreende.
Neste caso, claro, o que era estranho e algo assustador é que o livro, escrito há cerca de doze anos, se tornou tão actual. Quando estávamos a rodar as cenas de manifestações contra o capitalismo, passadas em Wall Street, exactamente ao mesmo tempo estavam a acontecer os movimentos de ocupação de... Wall Street. Nesse sentido, é inegável que, quer no livro, quer nas nossas filmagens, havia uma componente realista. Ao mesmo tempo, acontecendo em grande parte no interior daquela limusine, o filme tinha uma dimensão onírica, tanto no estilo como na estrutura.
E é preciso escolher entre uma coisa e outra?
Em última instância, como criador, não me sinto compelido a decidir aquilo que o filme realmente é. Apresento as coisas em toda a sua complexidade: podemos ver Cosmopolis como um filme de ficção científica, mas também como uma visão de elementos económicos e financeiros correntes no mundo de hoje. Até mesmo a tarte na cara: filmámos essa cena pouco antes de Rupert Murdoch ter sido atacado com... uma tarte na cara! As coisas que filmávamos estavam a acontecer no mundo – num certo sentido, é um documentário; noutra perspectiva, funciona como um sonho. Para falar verdade, quando lemos nos jornais o que está a acontecer com o euro e a eurozona, também parece um sonho. Ou um pesadelo.
Dir-se-ia que estamos a viver uma época em que o dinheiro, sendo totalmente concreto, é também a coisa mais abstracta que possamos imaginar...
É abstracta, sem dúvida. Os homens da finança nunca tocam em dinheiro: tudo se reduz a números e abstracções. Por exemplo, Édouard Carmignac, o homem de negócios francês (que é, aliás, um dos investidores da produção de Cosmopolis), considera o livro de DeLillo absolutamente correcto no modo como retrata a estranha mentalidade de muitas pessoas no mundo financeiro.
Eric Packer (Robert Pattinson) é essa personagem com um talento incrível para os números nos ecrãs dos computadores que, ao mesmo tempo, não sabe como pedir um prato num restaurante. Ele não sabe como é que as pessoas falam normalmente entre si. Quando sai da sua limusine, não sabe muito bem como se relacionar com os outros. Aliás, surpreendido, acaba mesmo por perguntar à mulher: “É assim que as pessoas falam entre si, não é?”
Essa abstracção generalizada conduz-nos, quase inevitavelmente, à questão do corpo. Ou seja: neste mundo de números e estatísticas, será que sabemos o que está realmente a acontecer aos nossos corpos?
O filme, claro, é muito sobre isso. Packer vive mesmo obcecado pelo seu corpo e pela possibilidade de monitorizar tudo o que lhe acontece: no filme, tem mesmo o corpo constantemente acessível nos ecrãs da limusine – num certo sentido, para ele, o seu corpo não é real a não ser quando aparece em algum ecrã de computador. Tem o médico que o examina regularmente e, ao mesmo tempo, a sua cabeça está desligada do corpo. Esforça-se muito por se integrar como um ser humano, mas tem enorme dificuldade em fazê-lo. Do meu ponto de vista, o corpo humano é, hoje em dia, muito diferente daquilo que era há cem anos e, sem qualquer dúvida, muitíssimo diferente do que era há mil anos.
Diferente por razões biológicas ou por causa do modo como falamos sobre ele?
Ambas as coisas. Durante muito tempo, as pessoas acreditavam que os seus cérebros chegavam a uma certa altura em que adquiriam uma estrutura fixa, definitiva. Sabemos agora, já há alguns anos, que isso não é verdade: o cérebro está em mutação constante, os neurónios em processo continuado de transformação. Por isso, a maneira como falamos e pensamos tem efeitos na estrutura física do cérebro. Por exemplo, uma pessoa que joga regularmente jogos de vídeo e, a certa altura, deixa de jogar... isso faz com que o cérebro mude. Do mesmo modo, são diferentes os cérebros de quem fala muito e de forma muito articulada ou de quem fala pouco e passa imenso tempo a olhar para ecrãs de computador.
[continua]