segunda-feira, abril 09, 2012

Memórias (cinematográficas) da Páscoa

Willem Dafoe
A Última Tentação de Cristo (1988)
De que falamos quando falamos da representação de Cristo no cinema? Em boa verdade, de uma variedade imensa de estilos, opções figurativas e perspectivas culturais. A Páscoa foi um pretexto para evocar tal variedade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Abril), com o título 'Em nome da Bíblia e do Cinema'.

Na galeria de filmes sobre a Paixão de Cristo, A Túnica (1953), de Henry Koster, não tem lugar de grande evidência. Centrado no tribuno romano Marcellus Gallio (Richard Burton), comandante do batalhão que conduziu Jesus à crucificação, persiste apenas como deliciosa curiosidade kitsch. E, no entanto, é também um dos títulos mais emblemáticos da evolução da indústria na década de 50, uma vez que o foi o primeiro a ser lançado em formato “CinemaScope”. A aposta no formato largo surgia como um desafio à concorrência crescente da televisão e, ironicamente, como uma demarcação dos primeiros filmes em 3D (lançados também por essa altura). À distância de seis décadas, a frase promocional de A Túnica encerra uma irresistível ironia: “O primeiro filme em CinemaScope: o milagre moderno que pode ver sem óculos!”.
O certo é que a ditadura das linguagens televisivas se consolidou, em particular através dos desígnios de um “hiper-realismo” moralista, metodicamente injectado na dinâmica colectiva das imagens. Que é A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson, a não ser a acumulação de um “excesso” figurativo que, todos os dias, faz as delícias de muitos “reality shows” e também de alguns apresentadores de telejornais? Mudança cruel de paradigma: já não se trata de dizer “este é o meu sangue”, mas sim “este é o sangue a que vocês (espectadores) têm direito.”
Nesta perspectiva, o “escândalo” de um filme como A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese, não é o de nenhuma negação do património bíblico mas, muito pelo contrário, o de uma obstinada colagem às convulsões do seu texto. Afinal de contas, na sua comovente vulnerabilidade, o Jesus de Scorsese é aquele que se vira para o Céu e pergunta: “Porquê eu?”