segunda-feira, janeiro 02, 2012

A televisão contra a política

Em televisão, de que se fala quando se fala de política? De quase tudo, como a política exige. Muitas vezes, quando triunfa a ligeireza televisiva, de quase nada — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Dezembro), com o título 'Atribulações políticas'.

1. Há qualquer coisa de involuntariamente caricato no modo como as televisões conseguiram esvaziar o prazer da análise politica. Desde logo porque, muitas vezes, anulam o tempo de reflexão. Quando ocorre algum acontecimento considerado importante, a análise ocupa de imediato a antena, fazendo passar uma bizarra pedagogia intelectual: “analisar” seria apenas começar a falar... no instante seguinte. Depois, assistimos a uma “democratização” profundamente equívoca: se um qualquer conflito do futebol é tratado com o mesmo dramatismo da mais aguda crise política, então tudo se passa como se pensar a complexidade do mundo fosse apenas manter um fluxo de conversas repetitivas e intermináveis (por vezes num tom cuja ligeireza, em boa verdade, muitos de nós evitaríamos assumir à mesa do café).

2. Com Kelsey Grammer no papel central, a série Boss, criada por Farahd Safinia, é, antes do mais, um caso surpreendente de actualidade, uma vez que surgiu no TV Séries poucas semanas depois da respectiva estreia americana (ocorrida a 21 de Outubro, no canal de cabo Starz). Centrada nas atribulações de Tom Kane, mayor de Chicago, desenvolve-se a partir de uma angustiada dicotomia: por um lado, Kane vive uma existência de cálculos mais ou menos cínicos, gerindo os golpes dos seus peões e garantindo a imagem estável do cargo que ocupa; por outro lado, descobriu recentemente que sofre de uma doença neurológica degenerativa que pode pôr em causa a sua simples capacidade de trabalhar e dialogar com os outros. Grammer, nosso conhecido das séries cómicas Cheers e Frasier, é notável neste registo dramático. Acima de tudo, a sua composição de Kane decorre de uma análise do jogo político que, para lá dos discursos ideológicos, nos confronta com uma verdade rudimentar, mas de perturbante efeito: existe uma barreira, formal ou mediática, entre a performance pública de um homem político e a sua privacidade, ao mesmo tempo que essa privacidade é, em tudo e por tudo, um motor vital da sua intervenção política. Encenar tudo isso sem recorrer à chantagem afectiva da imprensa tablóide (ou da televisão mais populista) não é simples nem banal. Mas é isso mesmo que Boss consegue.