quinta-feira, janeiro 22, 2009

"Second Life" — que cinema português?

Que se está a passar com o filme português Second Life? Não falo do filme — ainda sem projecção de imprensa marcada (com estreia agendada para o dia 29) —, mas sim do aparato ideológico que tem enquadrado o seu lançamento. Assim, através de uma conferência de imprensa de apresentação, ficámos a conhecer várias ideias e conceitos que vale a pena resumir e questionar.

1 - QUE CINEMA? Alexandre Valente, produtor do filme, declara que "vai ser o filme mais visto do ano". Quer isto dizer que não há nenhum valor especificamente cinematográfico com que o filme seja apresentado — a sua identidade é meramente financeira e só se (auto-)avalia pelos números de bilheteira.

2 - QUE COMÉRCIO? Para Nicolau Breyner, um dos actores do filme, "o público português está ávido de ver cinema comercial". Eis uma afirmação que parece compensar o carácter vago da anterior, mas só por mera ilusão. Desde logo, é uma afirmação que dispensa qualquer reflexão sobre o que é o público — se é uma massa amorfa ou, pelo contrário, se se trata de um colectivo fragmentado e fragmentário (aceitando a hipótese, plural e interessante, de que não existe um público, mas muitos públicos). Depois, e daí decorre uma imensa fragilidade argumentativa, estamos perante um enunciado que se dispensa de caracterizar aquilo a que atribui a designação de "cinema comercial". Em todo o caso, somos levados a supor que se trata de qualquer coisa cujo carácter "comercial" se prova por ser muito visto (porventura "o mais visto"). Neste caso, há uma pueril petição de princípio, uma vez que se pressupõe uma definição que o próprio objecto não contém — e que ficará "provada" por uma espécie de destino inevitável. Fica por esclarecer que nome dar aos muitos filmes, portugueses ou não, que foram fabricados com determinadas expectativas "comerciais" e falharam — desde O Mundo a Seus Pés, de Orson Welles, a Arte de Roubar, de Leonel Vieira, os exemplos são imensos e imensamente estimulantes.

3 - QUE AUTORES? O raciocínio de Nicolau Breyner vai mais longe e considera que isso não invalida a existência de cinema de autor. Quererá isto dizer que quando um filme falha na bilheteira passa a ser... "cinema de autor"? Pelo menos é essa a equação posta em marcha: o falhanço comercial parece emergir como condição sine qua non para caracterizar um filme como sendo "de autor". O que, convenhamos, complica ainda mais a argumentação dos que trabalharam em Second Life, quanto mais não seja porque a história do cinema não se adequa à indexação proposta. Por exemplo, Steven Spielberg faz "cinema comercial" ou é um "autor"? Quando fabrica monstruosos falhanços como 1941: Ano Louco em Hollywood ou O Império do Sol está a ser um "autor"? Ou seja: aquilo que o define como "comercial" é o impacto planetário de A Lista de Schindler? Claro que todas estas perguntas conduzem a um mesmo impasse: a descrição cinematográfica proposta pelos profissionais de Second Life não nos permite sequer abrir as portas da complexidade estrutural (económica, cultural, simbólica) do mundo do cinema, uma vez que tal descrição não possui a mínima consistência conceptual. Daí o absurdo intrínseco deste enunciado complementar: "Possivelmente, até poderá ser o cinema comercial a subsidiar o de autor." Como se pode sugerir uma política de subsídios cujas bases financeiras dependem daquilo que o mercado, por definição, não permite antecipar?

4 - QUE PÚBLICO? Alexandre Valente trabalha "para o público". Está no seu direito. Mas a sua filosofia de produção vai mais longe (ou, talvez, menos) porque, segundo garante, é preciso "pensar para quem estou a trabalhar". Que significa esse pensamento? Aparentemente, condensa-se numa ideia apenas quantitativa, a ser ilustrada, deduz-se, brevemente, pelo facto de Second Life vir a ser "o filme mais visto do ano". Se a lógica argumentativa é essa, então podemos deduzir que Alexandre Valente atribui um valor automaticamente positivo — socialmente positivo, entenda-se — a tudo o que possa ser medido por valores financeiramente elevados como, por exemplo, a venda de aspirinas ou cigarros. Na prática, isso serve para desqualificar (mais do que isso: tornar suspeito) qualquer pensamento que, ao tentar pensar uma determinada actividade humana, não aceite submeter-se aos números mais elevados que, financeiramente, essa actividade pode produzir. Na prática, isso tenta desqualificar qualquer pensamento — incluindo este, claro.

5 - QUE É ISTO? Ficamos ainda a saber que as cenas escaldantes do filme foram feitas, pelas respectivas actrizes, sem "constrangimentos". Porquê a necessidade de o explicitar? — eis uma bela questão psicanalítica que fica sem resposta. Deduzimos, então, que são cenas com claros elementos sexuais e, mais especificamente, com nudez. Afinal de contas, vivemos num país em que, muito por acção do imaginário das telenovelas, se convencionou como "lei" essa noção primária e equivocamente libertária segundo a qual a "nudez" é o signo primeiro (único neste sistema ideológico) de qualquer abordagem da "sexualidade". Que significa isto? Que nos apontam um caminho — não dito, não assumido — para um discurso mais ou menos machista sobre dois aspectos: primeiro, a representação da intimidade humana; segundo, aquilo que o "público" procuraria no "cinema comercial".

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A questão que se coloca a todos e a cada um — profissionais de cinema, responsáveis políticos e espectadores anónimos — é se se aceita, ou não, discutir os gravíssimos problemas do cinema português a partir de pressupostos de tão gritante inconsistência estética e económica. Por mim, a minha resposta é clara: não aceito. Second Life pode ser o filme mais extraordinário da história, mas discutir cinema (português ou não) a partir de tais pressupostos é vogar num vazio mental sem sentido. E sem cinema.