segunda-feira, dezembro 08, 2008

"Crepúsculo": vampiros para o séc. XXI

Mais do que uma actualização cinéfila das histórias de vampiros, Crepúsculo é um filme que resiste a uma imagem estereotipada e hiper-sexualizada da juventude — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 de Dezembro), com o título 'Amor de vampiros não tem sexo'.

O blockbuster americano impôs-se como padrão dominante do mercado cinematográfico há mais de trinta anos, a partir de Tubarão (1975), de Steven Spielberg. É um modelo de espectáculo que já gerou espantosos objectos de cinema como Parque Jurássico (1993) ou Matrix (1999), mas a sua persistência tem dependido menos de opções criativas interessantes e mais de conceitos de marketing que “viciaram” todos os circuitos cinematográficos.
Entre os blockbusters, o chamado “filme-para-adolescentes” (com ou sem “super-heróis”), é uma das áreas mais penalizadas pelo triunfo de um marketing alheio a qualquer forma de cinefilia: faz-se um filme muito pouco pelo filme que se possa fazer e, acima de tudo, para garantir a venda paralela de jogos, livros, t-shirts, etc., etc. Temia-se o pior face a Twilight/Crepúsculo, afinal um típico projecto de rentabilização de um best-seller internacional, assinado por Stephenie Meyer [capa]. Não que uma história romântica de jovens vampiros não pudesse ser um sugestivo ponto de partida. O certo é que a evolução da indústria reflecte uma instrumentalização fácil deste tipo de projectos, não poucas vezes redundando num imenso vazio narrativo, “compensado” por uma pletora de efeitos especiais.
Os resultados desmentem as previsões mais pessimistas, a provar que a realizadora Catherine Hardwicke (autora do magnífico Lords of Dogtown, com Emile Hirsch e Heath Ledger, lançado directamente em DVD) possui um olhar realmente original. Há mesmo um feeling revivalista, remetendo-nos não para as imagens de marca dos vampiros sanguinários dos anos 60/70, da produção britânica dos estúdios Hammer (lembremos a obra notável de Terence Fisher), mas sim para o universo contemplativo e poético das produções dos anos 30 lideradas pelo actor Bela Lugosi [foto].
Por feliz paradoxo, Crepúsculo não deixa de ser um filme eminentemente moderno, avançando com um retrato da juventude que resiste às convenções correntes, de raiz televisiva, que fazem de cada adolescente um pateta armado de hormonas e telemóveis (veja-se as telenovelas “juvenis” — exemplo — e repare-se como a descrição apenas peca por defeito). Podemos mesmo considerar que o filme de Hardwicke aplica os seus pretextos fantásticos para lançar uma espécie de “anti-ficção” juvenil em que o primado da sexualidade, embora sem ser negado, se apresenta transfigurado numa singular secundarização da actividade sexual.
Há uma justificação clássica, e classicamente simbólica, para esse efeito: o vampiro Edward (Robert Pattinson) não pode sugar o sangue da sua amada, a muito humana Bella (Kristen Stewart), sob pena de a transformar em mais uma figura assombrada [ambos na foto, em cima]. O certo é que Hardwicke sabe utilizar o dispositivo “obrigatório” do filme de vampiros para encenar um amor de perdição que se distingue pelo seu convulsivo pudor. Na prática, isso faz de Crepúsculo um verdadeiro objecto de resistência à banalização hedonista de muitas personagens adolescentes. Em vez de escravos da sua (in)satisfação, estas são personagens cujo prazer nasce da suspensão do êxtase sexual. Mais uma razão para descrevermos Crepúsculo como um filme saborosamente “antigo”, ou melhor, construído a partir de um provocatório anacronismo ético e estético.