domingo, novembro 23, 2008

Em conversa: Carlos do Carmo (4/5)

Continuamos a publicação da versão integral de uma entrevista com Carlos do Carmo publicada no DN a 17 de Novembro, data que assinala o lançamento da antologia “Fado Maestro”, que celebra os seus 45 anos de carreira.

Até que ponto a escolha de quem assina os poemas é determinante na criação de um disco?
Seja do que for na vida, gosto de gostar. E o gostar de gostar está ligado às pessoas e tem uma imagem de apreço. Em tempos ia ao Chiado engraxar os sapatos por um homem que era um artista. Na questão do repertório, fui conseguindo essa coisa mágica que foi o aprofundar de relações. Não teria sido possível eu cantar os 32 ou 33 trechos do Ary dos Santos se não tivéssemos tido a amizade que tivemos um pelo outro. Eu ainda não tinha aberto a boca e o Ary já sabia o que eu ia dizer. Ele estava a escrever um verso de que eu não gostava e já estava a rasgá-lo antes de eu o comentar. Às oito horas da noite o Ary ligava aqui para casa e falava meia hora com a minha mulher, depois dez minutos com os meus filhos e mais cinco comigo. Era uma família prolongada, fruto da sua solidão.

Trabalhou com vários outros autores...
O meu velho Frederico de Brito visitava-me na casa de fados... Tomava um Nescafé e um bagaço. Sentava-se num cantinho do bar e começava a conversar. Contava as histórias mais incríveis sobre o fado. O que me contou dos anos dez e vinte... Tenho isso gravado... São coisas que doarei ao museu do Fado. Depois dizia-me que gostava de explorar os meus graves. "Canooooa"...O Fernando Tordo, quando escreve um fado para mim, do princípio ao fim, aquela voz naquele momento certo... E se durante o teste eu tiver um rasgar de voz, um grito, ele faz a alteração ali na hora. O Paulo de Carvalho canta nos mesmos tons que eu canto. Ele está em casa... O José Luis Tinoco é outro caso. É um homem de uma música mais elaborada. É um perfeccionista e nunca está satisfeito... E veja-se o António Victorino d’Almeida. É uma pessoa que toca maravilhosamente o piano. Mas percebeu que nós, fadistas, temos uma maneira esquisita de trabalhar com os tempos. Estamos sempre ao lado... E não é que ele goza com isso (no melhor sentido)?

Tem uma discografia, mas sabe que há alguns discos que ficam registados na história...
Aí, são vocês que os escolhem...

Por exemplo Um Homem na Cidade e Um Homem no País...
E falta o terceiro... Um Homem no Mundo. Mas quando for ter com o Ary acabamo-lo... Eram três discos. Ele morreu... E faltou esse.

Porque são esses discos tantas vezes destacados?
A própria conjuntura ajuda... Se olharmos para o livro do Rui Viera Nery percebemos que a contextualização do fado, a circunstância em que as coisas estão a acontecer, tem importância.

Começa a carreira ainda sob o regime de Salazar. A mudança dos contextos políticos ressentiu-se no fado?
Acho que isso aconteceu desde sempre. Gostava de mais uma vez dizer que, pessoalmente, eu não fui afectado. Não tive quebra de vendas de discos nem de espectáculos. Mas o fado, sim. A esquerda radicalizou as coisas de uma forma tal que às tantas parecia quase absurdo o que se estava a passar. E eu perguntava a outras pessoas de esquerda, como eu, que me dessem uma boa razão para eu deixar de cantar o fado. E ninguém ma dava. “Ah, mas tu é tu”... Diziam alguns... Mas eu não sou o fado! Há fados de que gostamos e outros de que não gostamos... Não vamos é demonstrar ignorância. E porquê ignorância? Nos anos dez e vinte o fado tem um período brilhante em que as pessioas que escrevem para o fado escrevem a melhor poesia popular da Europa! E eram fascistas? Nos anos dez e vinte? Eram comunistas? Não... E este processo lento e meio complicado criou grandes ressentimentos. A classe fadista ficou muito ressentida. Ainda hoje se sente entre alguns mais velhos um grande ressentimento. E eu tentava fazer de pacificador.

Era difícil essa posição de pacificador?
Era um lugar isolado.

Não faria sentido era não deixar clara a sua posição política num tempo em que todos o podiam fazer...
Seria para mim a negação da vida. A ideia era darmos um passo para a construção da liberdade. Não faria sentido termos a liberdade e, para não desagradar a umas senhoras ou senhores, dizer que a minha política era o trabalho... As pessoas tomam as suas posições. Bem ou mal... Cantar o fado em liberdade é muito bom.

Foi o que fez nessa altura. Reflectiu o país no que cantou...
Mas sem dar recados...

Que acontecia em algum canto de intervenção...
Que também era legítimo, com grandes cantores de intervenção. Alguns deles vivos, com um belo trabalho feito. Mas quando o Ary estava escrever um fado que resvalava para aí, dizia-lhe que já me estava a por na boca aquilo que não queria dizer... Ele perguntava se eu estava ficar reaccionário...Nada disso! Sou fadista e tenho de cantar na minha área. Dizia-lhe que teríamos de fazer fados que, daí a 30 anos, as pessoas não dissessem de que ano eram. Ele percebeu..

(conclui amanhã)