terça-feira, agosto 12, 2008

Filmes, números e dólares

A prolongada agonia da cinefilia — à letra: o amor do cinema — está à vista, todos os dias, no triunfo da linguagem formatada do marketing sobre as próprias diferenças dos olhares (sim, porque o amor do cinema não implica que pensemos todos o mesmo).
Veja-se como o impacto nas bilheteiras de O Cavaleiro das Trevas serve, em muitos discursos, para justificar a sua excelência. Em boa verdade, trata-se do triunfo dos mesmos preconceitos que, há 33 anos, se abateram sobre Tubarão, de Steven Spielberg. Com uma lógica simétrica: nessa altura, o sucesso do filme servia para "provar" que os espectadores estavam todos alienados e que quem se atrevesse a defender o filme (aconteceu comigo, pobre de mim...) era um óbvio aliado do imperialismo americano — assim mesmo, com todas as letras.
Lembremos, então, uma coisa muito serena: é muito bom que cada um pense pela sua cabeça e os números de bilheteira de um filme (grandes ou pequenos) são um índice económico, certamente importante para pensar a existência industrial e comercial do cinema, mas não um "abre-te Sésamo" das suas especificidades.
Aliás, importa referir que, um pouco por toda a parte, também algumas formas de jornalismo e alguns discursos críticos contribuem para este endeusamento dos números, promovendo a ignorância da complexidade artística do mundo do cinema. No fundo, começando por ignorar a sua própria complexidade financeira. Vale a pena, precisamente a propósito das receitas dos filmes, citar um estudo que os analistas americanos da indústria fazem com regularidade (para os valores do respectivo mercado, isto é, EUA + Canadá): o da avaliação relativa dos números de bilheteira, isto é, a sua reconversão em função dos valores da inflação (disponível, por exemplo, no site Box Office Mojo).
Assim, de acordo com a mais recente versão desse estudo, podemos verificar que o filme mais rentável de sempre é muito anterior à idade moderna dos blockbusters, precisamente a que se inicia com Tubarão, e está à beira de fazer 70 anos: E Tudo o Vento Levou (1939). Os 198 milhões de dólares que o filme rendeu correspondem, em valores actuais, a 1430 milhões, ou seja, mais do triplo dos valores até agora alcançados por O Cavaleiro das Trevas (que surge no 48º lugar da lista). O próprio Titanic, que detém o recorde americano das receitas absolutas (600 milhões), surge em 6º lugar, com 908 milhões.
Por curiosidade, aqui fica o top 10 das receitas ajustadas à inflação:

1 - E Tudo o Vento Levou (1939)
2 - A Guerra das Estrelas (1977)
3 - Música no Coração (1965)
4 - E.T. (1982)
5 - Os Dez Mandamentos (1956)
6 - Titanic (1997)
7 - Tubarão (1975)
8 - Doutor Jivago (1965)
9 - O Exorcista (1973)
10 - Branca de Neve e os Sete Anões (1937)

Nada disto, insisto, insisto, insisto (ou seja, para quem tenha dúvidas: insisto), serve de argumento "pró" ou "contra" seja que filme for. Em boa verdade, só pode servir de argumento contra todos nós, espectadores. Porquê? Porque isto significa que, globalmente, vamos menos ao cinema: um grande sucesso de há meio século pode ter correspondido a vários grandes sucessos mais recentes. Apenas um exemplo sintomático: de acordo com as receitas ajustadas, podemos perceber que Ben-Hur (1959), 13º da lista, foi visto por mais do dobro dos espectadores que fizeram o sucesso de Shrek (2001), colocado em 99º lugar... Os números crescem e as audiências estão a desaparecer, eis o paradoxo.