segunda-feira, março 31, 2008

Letra por letra

Como diria a pequenita de Poltergeist: "They are coming..." — neste caso, são as imagens (e palavras) de Madonna, empenhada em envolver o lançamento do seu novo álbum (Hard Candy, 28 Abril) num exercício perverso de um narcisismo calculadamente ambíguo, isto é, sempre muito político. A saber: em que imagem me revejo? Ou ainda: de que modo a minha imagem lida com a expectativa dos outros?
Depois da capa do disco, e a julgar pelo dossier da edição de Abril de Dazed & Confused, dominam as associações a iconografias várias da luta e do esforço físico — com fotos do sempre fiel, e sempre brilhante, Steven Klein. Além de uma excelente entrevista, assinada por Jefferson Hack, a revista propõe nada mais nada menos que 70 páginas de tributo à Material Girl, com outras imagens e outras reinvenções do seu universo temático e simbólico. Da entrevista, retenhamos esta pérola de pedagogia sobre o entertainment: "A vida é paradoxal e é preciso aceitar isso no nosso trabalho e nas nossas crenças... não se pode tomar as coisas à letra, e as pessoas acabam sempre enredadas nisso. É por isso que, com as minhas coisas [my stuff], as pessoas dão de caras com uma parede, porque não é possível tomá-las à letra."

O blog antes da revista

Tal como foi noticiado no princípio de Fevereiro, a revista Ler, do Círculo de Leitores, vai reaparecer no mês de Maio sob a direcção de Francisco José Viegas. Enquanto aguardamos com expectativa a verdade do papel, a publicação volta a dar sinal de si, mas em formato de blog, a merecer visita: LerBlog.

Discos da semana, 31 de Março

Ilustre desconhecido nos seus dias, Arthur Russell é cada vez mais uma das referências sistematicamente citadas entre cultores de uma forma eloquente de abordagem aos códigos da chamada música de dança. Philip Glass, Allen Ginsberg e David Byrne foram dos poucos a compreendê-lo em vida. Hoje, uma multidão de descendentes presta-lhe homenagem e nele encontra um caminho, ainda com terreno aliciante a desbravar. Dos projectos Hercules & Love Affair a !!!, uma nova geração de músicos nova-iorquinos mostra sinais de admiração pelas revelações de um jovem violoncelista que na música de dança encontrou ferramentas para a libertação de canções pessoais e (in)transmissíveis. Kelley Polar, de certa maneira, é mais uma figura de um novo firmamento que orbita em torno da memória de Arthur Russell. Americano, nascido na Croácia (filho de pais diplomatas), Mike Kelley (o seu nome real) começou, como Russell pelo ensino musical “tradicional”. Passou pela mítica Juliard School, de onde foi expulso por alegados distúrbios durante um recital do director. Foi na Julliard que conheceu Morgan Geist (um dos rostos do colectivo Metro Area), com quem encetou uma parceria que, depois de primeiras experiências com o Kelley Polar Quartet, o conduziram à estreia em disco, em nome próprio, com o espantoso Love Songs Of The Hanging Garden (2005), um dos melhores álbuns de canções feitas de electrónica da presente década. I Need You To Hold On While The Sky Is Falling, agora, é o capítulo seguinte. No mesmo sentido, insiste no cruzamento de prazeres pop actuais com a herança de pistas pioneiras das electrónicas de finais de 70. Traços de personalidade experimentalista diluem-se em canções elegantes, belas, luminosas, melodistas. Chrisantemum herda traços do legado do disco. Todavia, o grosso do alinhamento opta antes por uma existência pop, dominada por electrónicas, mas sem nunca abdicar do violino, afinal o instrumento de eleição de Kelley Polar. Não surpreenderá tanto quanto o álbum de estreia. Mas é mais uma soberba colecção de grandes momentos pop.
Kelley Polar
“I Need You To Hold On While The Sky Is Falling”

Environ / imp. Flur
4 / 5
Para ouvir: MySpace


Só o estatuto de lendas vivas do indie rock tem mantido aceso o interesse de muitos pela música dos R.E.M. Há quatro anos, Around The Sun revelou inclusivamente o que parecia impensável: uma banda em quase piloto automático, banalizada, a resvalar para o desinteressante. Tudo muda, inesperadamente, com o novo Accelerate. Entusiasmados com comentários ao tom pungente do seu som de palco, resolveram despir mais de 20 anos de progressão rumo a uma depuração de linhas, ideias e formas, e voltar à casa partida. Voltaram a ligar as guitarras aos amplificadores, assim nascendo as canções que agora se mostram num álbum curto, rápido, directo e incisivo. Michael Stipe descreve-o como um disco ligado ao turbo. Não admira, portanto, o título escolhido. Em apenas 34 minutos, onze canções mostram uma intensidade que não lhes reconhecíamos há muito. Accelerate é um disco que nos confronta com três adultos desencantados, revoltados. Zangados, mesmo. Mas, acreditando na esperança, na mudança, evitando a mais passiva fuga implosiva que pode conduzir à depressão. Num exercício “faz de conta”, imaginaram-se na pele de um adolescente que vive a primeira década do século XXI e que faz questão de gritar pelo futuro. O seu futuro. O forte cariz político que brota destas canções (e em Houston é evidente mais uma incursão pelas sequelas do que de trágico o sistema revelou na sequência do furacão Katrina) ganha intensidade nesta aposta pelo curto, conciso e directo. Esteticamente, esta opção pode agradecer também ao bem sucedido trabalho do produtor Jacknife Lee (que conhecemos de trabalhos com os Bloc Party, The Hives ou U2) que sugere aqui a solidez de um conjunto de canções de arestas não polidas, de linhas ásperas. Mas, nem por isso, com os pregos de fora. Sabe bem voltar a ouvir, assim, os R.E.M.
R.E.M.
“Accelerate”
WB / Warner
4 / 5
Para ouvir: MySpace


Desde há alguns anos (nomeadamente desde a Marca Amarela, de 1992) habituámo-nos à absoluta surpresa à chegada de novo álbum dos Rádio Macau, parecendo cada disco querer desafiar eventuais ideias feitas ou caminhos óbvios que o passado pudesse eventualmente sugerir. Ganhou-se assim uma obra de invulgar versatilidade, e momentos de absoluto deleite inesperado, uns mais inspirados, outros nem por isso. Ao oitavo álbum, contudo (ou será, antes, nova surpresa?) os Rádio Macau mostram interessantes sinais de reencontro com as linhas mais “clássicas” de uma linguagem pop que serviu de tutano aos seus dois discos de absoluta referência gravados nos finais de 80 (em concreto O Elevador da Glória, de 1987 e O Rapaz do Trapézio Voador, de 1989). Longe, todavia, de representar uma operação de nostalgia pop, Oito é um álbum de personalidade sóbria e segura. Actual, veterano, tranquilo. De canções de arquitectura bem estruturada, arranjos elegantes, de melodias que servem com atenção as palavras. O disco, na verdade, cruza tempos. Algumas das canções nasceram, com música actual, de velhos poemas que Xana redescobriu num baú de ideias que ficaram por usar. Sonhos Impossíveis, por seu lado, é uma balada musculada que mostra como heranças do rock de 70 se reinventam no presente. Oito é um depoimento que sublinha como, a caminho dos 25 anos de carreira, uma banda pode procurar pistas na sua identidade para nelas projectar a alma de novas canções. Um jogo entre o presente e o aceitar de heranças que acaba com saldo favorável.
Rádio Macau
“Oito”

iPlay
4 / 5
Para ouvir: MySpace


Naturais de Manchester, mas sem a habitual parafernália de alusões às “tradicionais” genéticas musicais da cidade, os Elbow têm vindo a construir uma identidade (e discografia) naquele patamar entre o gosto indie (mais europeu) e um piscar de olho aos grandes e famosos do rock’n’roll, não admirando portanto que tenham já sido alvo de grandes elogios por gentes que vão dos U2 aos REM. O seu álbum de estreia, em 2001, definiu um caminho concreto, que os seguintes respeitaram e do qual o novo The Seldom Seen Kid é sucessor natural. Uma vez mais aqui se cruzam traves mestras feitas de sólidas referências clássicas, às quais o grupo junta uma vontade de, à sua maneira, experimentar o desafio. As canções alimentam-se da melancolia do quotidiano que é adubo antigo em muita da personalidade pop britânica nascida em grandes e sombrias cidades com tradição industrial. Brotam de histórias do dia a dia, falam de divórcios, da perda, da espera... O que não impede pontual fresta de optimismo. O piano e um claro sentido de grandiosidade sinfonista caracterizam o alinhamento, no fundo respeitando as linhas seguidas na discografia anterior do grupo. Os Elbow são menos polidos e “redondinhos” que os entediantes Coldplay, e em alguns momentos do disco dão-nos belas canções de encorpada personalidade, os arranjos e inesperadas mudanças de clima mantendo atenta a curiosidade do ouvinte. A insistência excessiva numa pompa e grandiosidade que não dão tréguas, acaba por instalar uma sensação se monotonia. E pela faixa oito damos para nós a ver quantas faltam para acabar o álbum. O que não é sinal encorajador.
Elbow
“The Seldom Seen Kid”
Fiction / Universal
3 / 5
Para ouvir: MySpace


Moby até é um tipo simpático. Dá luta numa boa conversa sobre política americana. E fala sobre Nova Iorque com o entusiasmo de quem vive com alma a vibração da cidade... A música? Bom... É indubitável a sua presença na reinvenção dos códigos pós-revolução da dance music na ressaca do que se escutou em finais de 80, no sentido da redescoberta de formatos próximos da canção já nos dias de 90. Go!, de 1990, é um reconhecido clássico do seu tempo, pilhando em notas (e climas) da banda sonora de Twin Peaks um tom invulgar que depois sugere a libertação pela dança... Seguiram-se uns discos entre o mais do mesmo e o vai-se ouvindo... Até que em 1999 chegou Play. Uma interessante colecção de invenções pop sobre samples de vozes bem escolhidos entre velhos arquivos. Mas, como o recente In Rainbows dos Radiohead, o álbum acabou mais vezes citado pela relação de Moby com uma eficaz política de cedência de temas para campanhas de publicidade que pela música que nele se guardava. Depois, em 2002, apresentou bocejo pop e tédio sob a forma de 18, um álbum que mais parecia de clones das sobras de Play. E em 2005 Hotel, melhorzito, ma non troppo... Agora regressa à noite (de onde veio, sugere a conversa fiada promocional). Last Night é, contudo, e mais ainda que o inconsequente 18, uma banalíssima colecção de exercícios em piloto automático. Moby rewind, baralha e volta a dar um pouco do que fez. Não mais do que já fez. Pior do que alguma vez fez. Tecnicamente competente, é verdade. Mas oco, vazio. Sem fibra nem muita fé no que gravou. Não admire que por aí ande a dizer que agora quer ser mais DJ que músico...
Moby
“Last Night”
Mute / EMI
1 / 5
Para ouvir: MySpace


Também esta semana:
The Whip, Supergrass, American Music Club (ed. Nacional), The Gossip (live), Billy Bragg, Joy Division (best of), Faces (reedições), The Cloud Room (ed nacional), Frank Black, Neon Neon, Muse (live)

Brevemente:
7 de Abril: Breeders, Rolling Stones, Balla, Clinic, Mexican Institute Of Sound, Triffids (reedições), James, Mobius Band, Long Blondes, Black Kids, Elvis Costello (reedição), Steve Reich, Roni Size, Was Not Was, Alabama 3, Presets
14 de Abril: B-52’s, Kooks, The La’s (reedição), Blood Red Shoes, Cinematic Orchestra (live), Forward Fussia!, Paul Haig, Dead Combo
21 de Abril: Camané, Last Shadow Puppets, Cut Copy, Robert Forster, Yundi Li/Ozawa (Prokofiev), Jonathan Richman,

Abril: Portishead, Madonna, The Presets, Crystal Castles, ABC, Tindersticks, Jamie Lidell, M83, Air (reedição), UHF (reedição), Petrus Castrus (reedição), Quinteto Académico + 2 (reedição), Telectu (reedição), Quarteto 1111 (reedição), Duran Duran (reedições – três primeiros álbuns numa caixa), Mesa, OMD (live), NIN, Doors (live), Jamie Lidell, Mountain Goats, dEUS, Supremes (raridades), Otis Redding (reedições)
Maio: Spiritualized, Animal Collective (EP), Tokio Police Club, Scarlett Johsnsson, Charlatans, Neil Diamond, Love (reedições), Marc Almond (EP), Soft Cell (reedição)

PS. Os textos sobre R.E.M. e Rádio Macau são versões editadas de outros originalmente publicados no suplemento IN, da revista NS

Quarteto: que futuro?

Será que o Quarteto vai ser o pró-ximo cinema apagado do mapa cultural e comercial de Lisboa? Este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Março), com o título 'Para não acabar com o cinema Quarteto'.

Notícias das últimas semanas dão conta da situação ago-nizante a que chegou o cinema Quarteto. Primeiro, a Inspecção-Geral das Actividades Culturais considerou haver deficiências várias no complexo de quatro salas, incluindo a falta de saídas de emergência em número adequado; depois, a inexistência de verbas para garantir as medidas exigidas pela lei conduziu a um encerramento “por tempo indeterminado”. Entretanto, os poderes públicos ponderam a hipótese de classificar o Quarteto como espaço de interesse cultural.
De facto, este é um drama anunciado há vários anos. Mais do que distribuir “culpas”, importa reter a crueza da situação a que se chegou. É uma situação que decorre de uma viragem global da distribuição/exibição que, como é sabido, está longe de ser especificamente portuguesa. Assim, o triunfo dos multiplexes (de que, ironicamente, o Quarteto foi, a partir de 1975, sob a direcção de Pedro Bandeira Freire, um modelo pioneiro) transfigurou de modo muito significativo as leis do mercado. Com consequências globais conhecidas: massificação consumista em torno de um número reduzido de títulos (os poucos que gozam de campanhas gigan-tescas) e crescente marginalização das tendências “alternativas” do cinema (incluindo o americano).
Não está em causa o facto de os multiplexes exibirem muitos filmes admiráveis. Como não faz sentido escamotear que alguns desses multiplexes proporcionam sofisticadas condições de projecção. Está em causa, isso sim, um valor vital de qualquer mercado cinema-tográfico. Ou seja: a pluralidade da oferta, valor que, importa lembrar, está longe de ser apenas cultural, uma vez que depende de factores de natureza visceralmente económica.
Aliás, a história do Quarteto ensina-nos que nada disso é linear, nada disso pode ser redu-zido aos maniqueísmos argumentativos que tudo esgotam numa oposição entre “bom” e “mau” cinema, filmes “culturais” e filmes de “entre-tenimento”. Afinal de contas, foi no Quarteto que se fez um dos mais espantosos sucessos do pós-25 de Abril com um filme tão “difícil” como A Religiosa (1966), de Jacques Rivette. Foi também no Quarteto que aconteceram coisas hoje em dia impen-sáveis como a estreia de All That Jazz (1979), de Bob Fosse, não apenas em exclusivo, mas... nas quatro salas!
O pior que poderia acontecer ao Quarteto seria que os decisores políticos o tratassem como um caso de nostalgia. Já basta de atitudes paternalistas que acabam por matar lentamente as salas de espectáculos, ao mesmo tempo que recusam lidar com a realidade, nua e crua, do mercado. Neste caso, importa ter em conta algo que decorre da mais básica lei da oferta e da procura: é vital que o chamado mercado cultural não seja “forçado” a submeter-se a lógicas que, em última instância, impedem os espectadores de aceder à diversidade da produção cinematográfica, seja ela contemporânea ou clássica (e é absurdo que essa diversidade se tenha tornado infinitamente maior na área específica do DVD). Mesmo com desequilíbrios e limitações, essa preocupação continua a ser essencial na oferta das grandes capitais da Europa. Por uma vez, não nos ficaria mal sermos europeus.

No coração do século XVIII

Pompeo Batoni
Verdade e Misericórdia, 1745

Fascinante exposição de Pompeo Batoni (1708-1787) na National Gallery, em Londres — assinalando o tricentenário do nascimento do pintor, esta é uma redescoberta empolgante (há cerca de quatro décadas que não se reuniam tantos trabalhos de Batoni) de uma obra na encruzilhada do emergente neoclassicismo, ainda com muitos temas e referências provenientes de heranças várias, incluindo todo um frondoso imaginário mitológico; além do mais, em meados do século XVIII, Batoni executou muitas encomendas de retratos de nobres da Europa, em particular de origem britânica, que faziam o chamado Grand Tour pelas principais capitais europeias. Na pintura de Batoni encontramos, assim, os lugares simbólicos de um momento charneira da história colectiva e dos valores sociais — a exposição decorre até 18 de Maio.

domingo, março 30, 2008

A ideologia tablóide

Sun
30 Março 2008
Edmonton, Canadá

Pode vir do nosso país ou do outro lado do mundo... Que faz com que saibamos logo que é um jornal tablóide? A resposta poderá ser de carácter formal: um certo estilo de grafismo, a agressividade dos títulos, protagonistas em "crise" (ou face a "crises"). Mas isso é pouco para definirmos esta ideologia agressiva e, mais do que isso, violentíssima: é preciso acrescentar que essas formas são já conteúdos. E o primeiro conteúdo é sempre o mesmo — a histerização da fealdade: olhamos para um tablóide e logo compreendemos que, na sua visão, não há lugar para nenhuma forma de beleza. Por isso, o tablóide promove o desgosto de sermos humanos. Aqui, o humanismo morreu.

O amor e a Lei

Luz Silenciosa, dirigido pelo cineasta mexicano Carlos Reygadas, é, por certo, um dos filmes mais enigmáticos, e também mais sedutores, ultimamente estreados entre nós — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Março).

O cineasta mexicano Carlos Reygadas não deixa ninguém indiferente. Títulos como Japón (2002) e Batalha no Céu (2005) reflectiam a procura de um erotismo insólito, empenhado em desafiar as formas tradicionais de representar os corpos e as suas relações. Luz Silenciosa (apresentado no Festival de Cannes de 2007) é um prolongamento lógico desse trabalho, embora evitando as facilidades formalistas que limitavam os resultados dos filmes anteriores. Trata-se, desta vez, de filmar um convulsivo drama de amor num ambiente de singularíssimas leis e enigmáticos comportamentos: uma comunidade de menonistas, no México, grupo de cristãos anabaptistas que defendem a não violência e o pacifismo. Reygadas filma-os sem nunca ceder a qualquer tom pitoresco ou moralista. Aquilo que o interessa é um sistema de relações em que a percepção do corpo e o entendimento dos desejos está muito distante das normas das nossas vidas urbanas. Daí que Luz Silenciosa se veja como um sedutor testemunho de um mundo que (ainda) acredita na verdade superior da Lei.

A IMAGEM: David Hockney, 1967

David Hockney
Day Pool with 3 Blues, 1967

Os rostos de Dylan

Não é um biopic sobre Bob Dylan. De resto, o filme nem assenta sob uma estrutura narrativa biográfica convencional. O músico norte-americano, sem dúvidas, é o ponto de partida. Mas em Não Estou Aí (I’m Not There no original) o que Todd Haynes nos propõe é um desafiante (e inteligente) conjunto de visões sobre momentos, marcas de personalidade, referências e mesmo factos que, juntos, sugerem visões possíveis sobre Bob Dylan. Mais um poema visual que uma história, o filme usa uma série de figuras para nos sugerir essa amálgama de retratos livres (e muito pessoais) sobre uma voz protagonista da história da música popular. Os fragmentos narrativos, aqui reunidos um pouco como as ideias e as palavras em muita da escrita de Dylan, não seguem uma cronologia nem mesmo um destino aparente. Cate Blanchett, Heath Ledger, Christian Bale, Marcus Carl Franklin, Ben Whishaw e Richard Gere compõem personagens distintas, cada qual inspirada por etapas distintas da vida (pessoal e artística) de Bob Dylan. Personagens e tempos cruzam-se, da sua soma nascendo a construção de uma ideia ...

Em Não Estou Aí Todd Haynes revisita, porém com maior complexidade e ousadia formal e narrativa, o tom compósito do seu assombroso Veneno (longa metragem de estreia, de 1991), a cada personagem (e sua história) atribuindo uma linguagem visual própria, para cada um apostando numa distinta abordagem à fotografia. Assim como eleva a patamares de mais pessoal interpretação os modelos de revisitação da sua memória melómana que, em 1998, nos deu uma leitura, muito na primeira pessoa, dos dias do glam rock em Velvet Goldmine.

Apesar dos ganchos factuais - que vão de um traveling por Nova Iorque onde vemos a figura de Moondog ao convívio com os Beatles, do encontro com Allen Ginsberg ao choque que as plateias folk sentiram quando a música de Dylan optou pela electricidade – Não Estou Aí é mais que uma colecção de instantes, de sugestões, de canções e imagens. Que, no fim, mesmo somadas e assimiladas, acabam por não revelar quem, afinal, é Dylan. Porque, na verdade, ninguém o sabe... Mesmo sendo poderosíssimas as sequências protagonizadas por Cate Blanchet (que retratam o período de mitificação da personagem em meados de 60, a história viagem a Inglaterra na qual conhece os Beatles e a polémica “eléctrica” que gerou controvérsia entre os primeiros admiradores) e igualmente pungentes as cenas nas quais vemos Heath Ledger e Christian Bale, o conhecedor do universo “Dylanesco” tirará mais partido da descoberta das visões de Todd Haynes que os desconhecedores da obra do músico. Para estes últimos, em jeito de trabalho de casa, nada como ver, antes de Não Estou Aí, o soberbo No Direction Home, documentário realizado por Martin Scorsese sobre os primeiros anos da carreira de Dylan. OU, nas suas próprias palavras, ler o primeiro volume das Crónicas...
PS. Versão editada de um texto publicado no suplemento IN, da revista NS

Uma sinfonia "disfarçada"

Johannes Brahms (1833-1897) tinha apenas 20 anos quando Robert Schumann escreveu, no Neue Zeitchrift für Muzik um artigo que fez história a que deu o título “Neue Bahnen” (ou seja, “Novos caminhos”). O artigo falava, entre outras figuras e assuntos, do jovem Brahms, que Schumann viu ao piano, afirmando que na ocasião “revelara regiões maravilhosas” a quem o escutava. Brahms apresentara, nesse programa, o que identificara como sonatas. Schumann chamou-lhes sinfonias disfarçadas... E exortou o jovem músico a experimentar a escrita sinfónica... Se o artigo agradou a Brahms pelos elogios, a verdade é que também nele semeou um certo temor pela responsabilidade... Ansiedade pura e simples, abrindo uma das histórias de receio mais célebres da música do século XIX. E levou mais de duas décadas a responder à sugestão. E quando o fez deixou inscrita uma curta, mas soberba, obra sinfónica. No hiato entre o desafio e resposta, Brahms ensaiou várias abordagens à sinfonia, de uma delas nascendo o seu Concerto Para Piano e Orquestra Nº 1 em ré menor. Na génese deste concerto moram esboços para uma sonata para dois pianos que, a conselho de amigos, Brahms orquestrou, com vista à criação de uma primeira sinfonia... Acabou todavia por desenvolver os esboços no sentido de um concerto para piano, com um primeiro andamento majestoso, herdeiro da eloquência de um Beethoven, em Scumann procurando depois referências para o desenvolvimento do segundo e terceiro andamentos. Esta outra “sinfonia disfarçada” conhece agora nova gravação pela BBC Symphony Orchestra, dirigida pelo checo Jiri Belohlavek, e com o jovem francês Cédric Tiberghein (piano) como solista, que se tem afirmado presença regular no catálogo recente da Harmonia Mundi (que edita este disco). Ao Concerto para Piano e Orquestra Nº 1 o alinhamento do CD junta ainda, e também de Brahms, as Variações op.50a sobre um tema de Haydn.

Também de Johannes Brahms, os escaparates nacionais receberam recentemente uma gravação (da EMI Classics em finais de 2007) do fulcral Ein Deutsches Requiem, pela Filarmónica de Berlim, sob direcção de Sir Simon Rattle, com as vozes de Dorothea Röschmann (soprano) e Thomas Quasthoff (barítono). Obra central na obra de Brahms, é a sua composição de maior envergadura. Apesar do título, aproxima-se pouco da tradição litúrgica da missa de requiem, revelando-se antes mais um acto de consolação dos enlutados. Estreada em 1868, usa fragmentos de textos da Bíblia luterana, assinalando logo aí um afastamento aos cânones das missas pelos mortos. Crente, mas não dominado pela vida religiosa, Brahms chegou mais tarde a afirmar que gostaria de ter trocado o “alemão” do título por “humano”, amplificando assim a extensão de um sentimento de perda além de uma noção de identidade nacionalista. Há quem defenda que esta obra foi motivada pela dor das perdas da sua mãe e do amigo Robert Schumann.

Que fazer a 19 de Julho?

Assim se lançava a questão, em noite de oferta de peso na região de Lisboa... E o que ditou a votação? Parece que a maior parte dos leitores do Sound + Vision vai mesmo ver Leonard Cohen, no Passeio Marítimo de Algés, nessa noite de muita oferta... 19 de Julho, não esquecer. Mesmo assim, um quarto dos leitores marcará presença no Campo Pequeno para ver Lou Reed a interpretar, de fio a pavio, o clássico álbum de 1973 Berlin. Há quem deixe já claro que vai ficar por casa... E também quem opte pela jantarada com noitada dançante como complemento directo. Ninguém mostrou vontade em passar pelo Festival Tejo... É o primeiro campo na história dos inquéritos Sound + Vision a chegar ao fim da votação a zeros! Para sistematizar as opções, aqui ficam os resultados finais:

1º Ver o concerto de Leonard Cohen – 40%
2º Ver o concerto de Lou Reed – 25%
3º Ficar por casa – 23%
4º Jantarada e noitada logo depois – 9%
5º Ir ao Festival Tejo – 0%

sábado, março 29, 2008

Intimismo pop

O nome é espanhol: El Perro del Mar. A banda é sueca. Número de elementos: um. Aliás: uma. Chama-se Sarah Assbring e começou a fazer música em 2003, num registo de absoluta independência que lhe valeu o epíteto de "artista-de-mp3". Daí para cá editou uma colectânea das suas primeiras experiências, Look! It's El Perro del Mar! (2005), e o álbum El Perro del Mar (2006). De sonoridades singelas, mas sempre inesperadas e envolventes, Assbring pratica uma pop aberta às mais diversas influências e contaminações — é uma música ao mesmo tempo cândida e de um enigmático intimismo. Recentemente, concluíu um novo álbum — From the Valley to the Stars —, contando já com as participações de Jesper Jarold (guitarra e baixo), Nils Törnqvist (bateria), Kristin Lidell (trompete) e Björn Synneby (sitar e vozes adicionais), além de alguns músicos da Orquestra Sinfónica e cantores do Coro Sinfónico de Gotemburgo.
Na Suécia, o maior sucesso de El Perro del Mar, God Knows (You Gotta Give to Get), do primeiro álbum, passou por este delicioso teledisco, desenhado e realizado por Åsa Arnehed.

A televisão contra o cinema

Desapareceram recentemente dois nomes grandes do cinema inglês: Anthony Minghella e Paul Scofield. Como é que as televisões os recordaram?... Esqueceram-nos. Este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Março), com o título 'Os nossos mortos'.

Não creio que os obituários televisivos mais ou menos pomposos e angelicais tragam grande bem ao mundo. De facto, a obrigatória “purificação” post-mortem não será uma via inteligente, ou simplesmente útil, para lidar com as heranças, necessariamente plurais, por vezes contraditórias, dos nossos mortos.
Dito isto, confesso que me surpreendeu e desconcertou a quase indiferença, para não dizer o silêncio, com que as televisões generalistas portuguesas receberam os falecimentos de dois nomes grandes do cinema inglês: o realizador Anthony Minghella e o actor Paul Scofield (o primeiro a 18 de Março, o segundo no dia seguinte).
Para além do talento específico de cada um, não estamos a falar, entenda-se, de figuras secundárias ou esotéricas. Minghella, autor de títulos como O Paciente Inglês (1996), Cold Mountain (2003) ou Assalto e Intromissão (2006), assinou alguns filmes verdadeira-mente populares. Scofield, embora mais ligado a uma longa e importantíssima carreira teatral (nos palcos ingleses), tornou-se também uma figura conhecida do mundo dos filmes, tendo participado, por exemplo, em Henrique V (1989), de Kenneth Branagh, ou Quiz Show (1994), de Robert Redford. Além do mais, ambos eram “oscarizados”: Minghella pela realização de O Paciente Inglês; Scofield pelo papel de Thomas Moore, em Um Homem para a Eternidade (1966).
Infelizmente, o “esquecimento” de Minghella e Scofield é apenas um sintoma (mais um) da sistemática marginalização do universo cinematográfico. Em boa verdade, se o cinema passou a ter uma vida televisiva tão secundária, não surpreende que os seus mortos se tenham também... secundarizado. Na prática, é possível ver 20 vezes o último golo marcado por Cristiano Ronaldo, mas é quase impossível ter algumas palavras (e imagens) para evocar uma qualquer personalidade marcante do universo cinematográfico. Significa isto que, para os valores dominantes do jornalismo televisivo, o cinema deixou de pertencer aos temas realmente populares.

Fragmentos de solidão

Há um filme simplesmente imperdível nos ecrãs portugueses. E chama-se Os Fragmentos de Tracey. O efeito que deixa no espectador quase lembra o de Tarnation, de Jonathan Caouette. Mas desta vez, no lugar da autobiografia, com tempero narcísico, do jovem norte-americano, estamos contudo no domínio da ficção, a história partindo directamente do romance The Tracey Fragments, da escritora e dramaturga canadiana Maureen Medved. Em traços largos, conhecemos Tracey Berkowitz, apenas vestida com um lençol, no banco de trás de um deserto autocarro em aparente distante fim de linha... Tracey procura o irmão, mais novo, desaparecido... As pistas dadas à partida não mostram muito mais, desafiando o espectador a juntar os fragmentos que depois irá recolher. Fragmentos tão dispersos, uns mais panorâmicos, outros de pormenor, tal como aqueles em que se divide o ecrã, que raramente permite o monopólio de uma só imagem. Este dispositivo, a literal fragmentação do ecrã, que nos sugere a observação (e consequente exercício de colagem) de vários olhares sobre um mesmo objecto, espaço ou contexto, é marca formal que o realizador Bruce McDonald toma como elemento de identidade desta narrativa. Porém, nunca o dispositivo surge como elemento perturbador da construção da história. Nunca se assume como protagonista, servindo antes, de uma forma peculiar, desafiante, a narrativa que nunca deixa de relatar. E que, como se frisou antes, é, tal como as imagens, um conjunto de fragmentos que cabe ao espectador ordenar, unir, descodificar... Na essência descobre-se uma visão crua, mesmo cruel, do universo teenager, das relações familiares ao espaço da escola, dos afectos à solidão. Tudo isto mais uma espantosa interpretação de Ellen Page (Tracey). E uma soberba banda sonora essencialmente dominada pela música dos Broken Social Scene, na qual pontuam ainda momentos ao som de Peaches, ou uma versão do clássico Horses, de Patti Smith, por Elisabeth Powell, dos Land Of Talk.

Mais ecos da cave

Mais um mergulho na memória do “universo” Bauhaus, desta vez recordando o primeiro projecto a solo nascido entre elementos da banda, com discografia que nasce mesmo antes da separação que seguiu ao álbum Burning From The Inside, de 1983. Falamos dos Tones on Tail. O projecto nasceu em 1982, juntando o guitarrista Daniel Ash a Glenn Campling, até então um roadie ao serviço dos Bauhaus (e responsável pela mítica capa do álbum In The Flat Field). Em duo lançaram um EP e dois singles. Em 1984, depois da separação dos Bauhaus, os Tones On Tail tornaram-se um trio, com a entrada do baterista Kevin Haskins. Em trio gravaram Pop (1984), o seu único álbum de originais, do qual foram extraídos quatro singles. O grupo promoveu um encontro entre as fundações do rock gótico e memórias mais remotas do psicadelismo, apresentando uma produção atenta a meticulosas texturas, abrindo de certa forma o caminho que conduziu aos Love & Rockets, que juntariam Ash e Haskins ao velho parceiro David J a partir de 1985. A memória dos Tones On Tail aqui fica hoje registada com este Go!, de 1984.



O melhor dos Specials

Os Specials, uma das bandas-chave do movimento que acabou conhecido como ska revival, em finais dos anos 70, vão ter na próxima semana no mercado uma antologia que recolhe em CD e DVD todos os seus singles. Como sempre, a antologia integra no mesmo "saco" os Special AKA, descendência directa dos Specials em inícios de 80.

sexta-feira, março 28, 2008

Iconografia

Ano Madonna - 18
Life
, 1 de Dezembro de 1986


Quando é que o estatuto de estrela deixa de ser um projecto, uma ambição, eventualmente uma soma de qualidades ou poderes? Talvez que a resposta seja a mais metafísica: quando tudo isso já não importa e se instala uma espécie de evidência mitológica, mesmo se é verdade que as histórias do mundo (e Roland Barthes...) nos ensinam que a mitologia é uma máscara que se instala como evidência.
Digamos, então, que tudo isso acontece quando Madonna é fotografada por Bruce Weber para a capa da Life, mais precisamente para a edição do dia 1 de Dezembro de 1986 (cerca de vinte dias passados sobre o lançamento americano do single de Open Your Heart, o quarto do álbum True Blue). Por um lado, a memória (mitológica, hélas!...) de Marilyn Monroe mantém-se vivíssima — Weber trabalhou mesmo a partir de algumas das suas fotos emblemáticas; por outro lado, dir-se-ia que já se instalou a independência, discretamente altiva, de alguém que passou a citar os outros (e as outras) por razões dramatúrgicas, não à procura de uma qualquer caução. Tinha nascido um ícone.

Em harmonia com os deuses

Toru Yamanaka / AFP

Sem manipulação digital! Assim mesmo: Joei Yoshikuni, monge budista do templo de Jigenin (Japão), treinou o seu chihuahua, de nome "Conan", para o acompanhar nos rituais diários. Nenhuma divindade, de nenhum credo, protestou. E Toru Yamanaka, da agência France Presse, obteve um delicioso momento de fotojornalismo sem preconceitos. A imagem tem dado a volta ao mundo e está, por exemplo, no magnífico conjunto de fotografias da vida selvagem — Week in Wildlife — proposto pelo jornal The Guardian. Para conhecermos melhor o bem interessante trabalho de Toru Yamanaka, sugerimos a respectiva página na Getty images.

Ensaio sobre a claustrofobia

De uma maneira ou de outra, a tradição do cinema de terror passa por um jogo de contrastes e ambivalências entre o visível e o invisível, o que tem forma e o que é informe. The Mist/Nevoeiro Misterioso é um filme que refaz esse jogo de modo brilhante — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Março), com o título 'O Que É a Democracia?'.

Provavelmente, nas últimas décadas, não existe escritor mais frequentemente adaptado ao cinema (e televisão) que Stephen King. Muitas vezes, há que reconhecê-lo, com resultados rotineiros ou mesmo desastrosos; outras dando origem a obras de excepção (lembremos o caso modelar de The Shining, filmado em 1980 por Stanley Kubrick). Frank Darabont é, por assim dizer, um cineasta reincidente no universo de King. Depois das adaptações de The Shawshank Redemption/Os Condenados de Shawshank (1994) e The Green Mile/À Espera de um Milagre (1999), Darabont surge agora com Nevoeiro Misterioso, versão inesperada, desconcertante e em muitos aspectos fascinante de The Mist, novela originalmente publicada em 1980.
Convenhamos que as meras peripécias desta história de uma cidadezinha invadida por um nevoeiro que transporta monstros podiam servir para mais um banalíssimo filme de terror, igual a tantas dezenas que por aí andam, tentando compensar a falta de imaginação com a proliferação de criaturas bizarras e mais ou menos digitais. Claro que o filme não se coíbe de utilizar alguns modernos recursos dos efeitos especiais para dar “corpo” às entidades ameaçadoras trazidas pelo nevoeiro. A diferença essencial que Darabont introduz não tem a ver com as aplicações da tecnologia mas, em primeiríssimo lugar, com a simples arte de contar uma história (ele acumula, aliás, as tarefas de realização e escrita de argumento).
De forma algo insólita, o filme intensifica o efeito claustrofóbico do universo de Stephen King, quanto mais não seja porque o essencial da acção decorre no interior de um supermercado onde as personagens se refugiam do nevoeiro. Naquele espaço de bizarra “transparência” (até pela sua imensa fachada de vidro) assistimos ao desenvolvimento de uma teia dramática que, por assim dizer, coloca à prova a própria coerência de uma pequeníssima, mas muito típica, comunidade. A pouco e pouco, a ameaça à estabilidade das relações sociais conduz a uma estranha e perturbante inquietação. A saber: até que ponto os valores dessas relações são produto de uma convicção colectiva ou meros artifícios sem consistência prática? Ou ainda: o que é, e como funciona, a democracia?
Os efeitos simbólicos são tanto mais subtis quanto Darabont sabe colocar em jogo algumas componentes (desde o poder da instituição militar até aos efeitos da alienação religiosa) que, de forma contida mas muito incisiva, ecoam alguns dramas da América contempo-rânea. De forma sugestiva, talvez possamos resumir o impacto de Nevoeiro Misterioso como uma fusão da inquietude simbólica de Os Pássaros (1963) [cartaz], de Alfred Hitchcock, com a angústia existencial de The Thing/Veio do Outro Mundo (1982) [imagem em baixo], de John Carpenter. No campo específico do género de terror, já há algum tempo que não víamos, assim, um trabalho tão rico de encenação e, ao mesmo tempo, tão consciente da tradição que o enquadra.

Dez anos depois...

Ao contrário dos ecos que chegaram de uma noite de nervosismo e sons por “afinar” no Porto, o concerto lisboeta dos Portishead foi celebração vivida tanto na plateia quanto no palco. Diferente da memória de 1998 no Sudoeste. Melhor que a noite no Sudoeste... Alinhamento perfeito, doseando as canções minimalistas do sublime Third entre memórias de há dez anos. Som perfeito, voz de Beth Gibbons em grande forma, revelando um grupo com personalidade de palco distinta do que lhes conhecemos em disco, à pele e osso das canções acrescentando o calor da carne. Esta ideia é particularmente evidente nas canções do álbum a editar daqui a um mês, que, despidas à essência de uma ousada (e magnificamente concretizada) visão de uma música feita de quase nada, contudo intensa, se mostram em palco mais encorpadas, vivas. Isto sem retirar méritos ao registo em disco, que mostra como os Portishead encontraram, na sua demanda pelo som, uma nova forma de abordar a melancolia na canção, usando o ruído, a máquina, a textura, como elementos de protagonismo cénico em composições que concentram na voz a expressão maior da condução da melodia. A intensidade de Machine Gun tirou dúvidas a quem eventualmente antes perguntava porque era tão “estranho” o novo single. The Rip revelou-se perfeita junção de belos sonhos folk, em registo pastoral, à carga metronómica do vai vem pendular da existência urbana. Belas versões, sobretudo das memórias dos dias de Dummy, algumas (como Mysterons) a ganhar alguma da alma minimalista do novo Third... Arrepiante o curto ensaio de canto lírico nas notas finais de Wandering Star. Uma noite com conta peso e medida. Sem canções a mais. Sem tempo a menos... Certamente um dos concertos do ano!

Febres de 1982 à noite

Discografia Duran Duran - 10
'Carnival' (EP), 1982

A estratégia da EMI para sublinhar o afastamento dos Duran Duran do movimento neo romântico do qual haviam nascido, procurando assim assegurar a sua sobrevivência e maior projecção global passou pela aposta numa afirmação do grupo como uma nova força na música de dança. Daí a ideia de, em finais do Verão de 1982, ter lançado um EP que recolhesse remisturas de canções do álbum Rio, tornando-as candidatas a morar nas pistas de dança da rentrée, assim como assegurando eventual nova passagem pelas rádios aos temas de um álbum que então somava já alguns meses de vida. O EP, que recebeu como título Carnival, vincava também um contraponto a Save a Prayer, o mais recente single do grupo: uma balada... Por detrás do EP está David Kershenbaum, produtor com credenciais na música de dança que assegurou a remistura dos temas mais dançáveis do álbum, não apenas com o EP em vista, mas também para os máxi-singles entretanto editados e, inclusivamente, uma versão susbtancialmente remisturada do próprio álbum Rio, que a Capitol lançou depois no mercado norte-americano. Carnival foi apenas lançado em cinco países (EUA, Holanda, Espanha, Japão e Taiwan), para cada edição a EMI tendo apostado em capas e alinhamentos distintos. A melhor colecção de remisturas é a que se apresenta na edição japonesa (capa que ilustra o post), cujo alinhamento foi mais tarde integralmente editado em CD num álbum duplo lançado pela Toshiba EMI. A edição japonesa juntou uma remistura de New Religion às de Hold Back The Rain, Hungry Like The Wolf, Rio e My Own Way ou mesmo Planet Earth ou Girls On Film (do álbum de 1981) das outras edições.

A edição holandesa apostou numa capa branca, com fotos de 1982 dos cinco elementos do grupo. O alinhamento divide atenções entre os temas desse ano e a memória do ano anterior, como que sugerindo o melhor da história “dançável” dos Duran Duran até então. Juntam-se aqui as Night Versions de Rio, Hungry Like The Wolf e Planet Earth com uma versão alternativa de Girls on Film. A versão espanhola de Carnival apostava essencialmente num alinhamento semelhante à deste EP holandês. A principal diferença residiu na capa, com a (habitual) tradução dos títulos das canções para castelhano.

A edição norte-americana, que foi também editada no Canadá, foi a comercialmente mais bem sucedida de todas e chegou a marcar entrada na tabela de álbuns mais vendidos por uma semana (no número 98). O alinhamento aposta essencialmente nos temas mais dançáveis de Rio. Ou seja, Hungry Like The Wolf na remistura do maxi-single lançado alguns meses antes, My Own Way e Hold Back The Rain em novas misturas. E, para recordar 1981, Girls On Film (Night Version).

REM: Accelerate ao vivo

FOTO Joel Didriksen / kinpinphoto.com

Está a chegar o novo álbum dos REM, Accelerate — já aqui o descobrimos através do teledisco de Supernatural Superserious. Agora podemos ouvir um concerto que a banda deu em Austin, Texas (12 de Março), testando alguns dos respectivos temas. É uma produção da NPR e está disponível na NPR music. O alinhamento é o seguinte (em itálico as canções do novo disco):
> "Living Well Is the Best Revenge"
> "Man-Sized Wreath"
> "Second Guessing"
> "Drive"
> "Hollow Man"
> "Animal"
> "Auctioneer (Another Engine)"
>
"Mr. Richards"
> "Fall on Me"
> "The Great Beyond"
> "Houston"
> "Electrolyte"
>
"Accelerate"
> "Until the Day Is Done"
> "Final Straw"
> "Bad Day"
>
"Horse to Water"
> "Walk Unafraid"
> "Supernatural Superserious"
> "Imitation of Life"
>
"I'm Gonna DJ"
> "Man on the Moon"

Clonagens

A "sinopse geral" da mais recente telenovela da TVI começa assim:

"Beatriz morre em África, numa situação muito confusa e polémica. O marido, Rafael, terá tido culpa? Sabemos que com ele estava a sua amante, Catarina. Mantinha com ela um romance há muito tempo e que era conhecido da maior parte dos amigos e das pessoas que com eles lidava. Terá sido Catarina conivente na morte de Beatriz? "

O mesmo texto conclui:

"Esta é uma história que joga sobretudo com os sentimentos de pessoas que encaram a vida de forma diferente. Tendo como cenário zonas fantásticas de África, a beleza pura e selvagem do Nordeste Transmontano, ou locais paradisíacos da Grande Lisboa, A OUTRA não vai deixar ninguém indiferente."

Os sentimentos de pessoas que encaram a vida de forma diferente — que psicologia "de bolso" é esta? Como é possível que se tenha chega a este ponto de banalização dramática e indigência dramatúrgica? Mais do que isso: como é que ainda se promove a degradação estética (e anti-cinematográfica) da telenovela com banalidades como "os locais paradisíacos da Grande Lisboa"?
Olha-se para os cartazes e o efeito é terrível: os actores serão "melhores" ou "piores" (além de que é intocável o seu direito, profissional e cívico, a ganharem a sua vida), mas o certo é que passaram a existir submetidos a uma iconografia letal. Parecem clones, robots restaurados daquilo que, idealmente, já teve a ver, algures, com algum desejo de representar. Aqui, não há desejo — e isso é sempre assustador.
Se não é permitido fazer publicidade ao tabaco, porque é que se encara como "natural" esta hiper-abundância de cartazes, esta ocupação do espaço social quotidiano por tamanha mediocridade iconográfica? Ninguém pensa os efeitos endémicos desta vulgarização dos olhares? Ou, se for caso disso, quem avança e defende a ideia de que as imagens são indiferentes e os olhares não têm importância? Está aí alguém?...

quinta-feira, março 27, 2008

Paisagens de Peter Doig

PETER DOIG Concrete Cabin, 1994

É um dos grandes pintores europeus da actualidade: o escocês Peter Doig (n. 1959) tem uma retrospectiva da sua obra em exposição na Tate Britain. Quando se percorrem as oito salas e a cerca de meia centena de obras expostas, em tela e papel, o mais surpreendente será a constatação do equilíbrio instável em que Doig se exprime: por um lado, há na imponderabilidade do seu traço, e também no carácter imaterial que o seu cromatismo muitas vezes sugere, uma tendência para uma quase abstracção; por outro lado, nunca o seu universo dispensou uma constante relação com a figura humana e, como é óbvio, um profundo gosto paisagístico — poderemos dizer, talvez, que Doig é o pintor de uma arte contemplativa em que tudo existe num devir-paisagem, tudo incluindo o factor humano.

> A retrospectiva de Peter Doig estará em Londres até 27 de Abril, seguindo depois para Paris (
Musée d'Art Moderne, 29 Maio/7 Setembro) e Frankfurt (Schirn Kunsthalle, 9 Outubro/4 Janeiro 2009).

Peça de Tom Stoppard no Teatro Aberto

Hoje, Dia Mundial do Teatro, chega a Portugal a mais recente peça do dramaturgo britânico Tom Stoppard [foto]: Rock'n'Roll estreia-se numa encenação de João Lourenço, no Teatro Aberto (em cena até 1 de Junho).
Rui Mendes, Paulo Pires e Beatriz Batarda são os principais intérpretes de Rock'n'Roll, numa versão de João Lourenço e Vera San Payo de Lemos, com cenários de João Lourenço e Henrique Cayatte, e figurinos de Maria Gonzaga; Nuno Galopim é o consultor musical do projecto. Estreada em 2006, no Royal Court Theatre de Londres, a peça de Stoppard revisita as atribulações da história europeia, de 1968 a 1990, isto é, das convulsões do movimento estudantil até à queda do Muro de Berlim — a acção reparte-se entre Praga, onde uma banda de rock'n'roll (The Plastic People of the Universe) se torna um símbolo de resistência ao regime socialista, e Cambridge, onde o amor e a morte marcam a vida de três gerações da família de um filósofo marxista.

As mil faces (e vozes) de Dylan

Chega hoje aos ecrãs nacionais o filme de Todd Haynes I'm Not There. E, com o filme, a respectiva banda sonora. O disco (um CD duplo) inclui mais que o que se escuta frente ao grande ecrã, num total de 34 temas. E apenas uma com Dylan... Na verdade, a banda sonora de I'm Not There é o tributo à música de Bob Dylan que ainda não tinha sido criado. Inclui, entre outras, versões de All Along The Watchover, por Eddie Vedder & The Million Dollar Bashers, de I'm Not There pelos Sonic Youth ou Knocking On Heavens Door, por Antony And The Johnsons... E, entre o extenso alinhamento, colaborações de nomes como os de Sufjan Stevens, Yo La Tengo, Stephen Malkmus, Cat Power, Karen O, Tom Verlaine, Charlotte Gainsbourg ou Iron & Wine. No fundo, nada mais que a aplicação, a Dylan e seus universos, a mesma lógica que definiu, há dez anos, a não menos obrigatória banda sonora de Velvet Goldmine. Também de Todd Haynes.

São crisântemos, senhores...

Já lançado para download há alguns dias, o segundo álbum a solo de Kelley Pollar, I Need You To Hold On While The Sky Is Falling chega ao circuito de lojas tradicional europeu a partir da próxima semana. Como aperitivo, e à falta de novo teledisco, aqui fica Chrysanthemum (tema originalmente lançado num EP editado em 2007), faixa incluída no alinhamento do novo álbum. Dos temas do disco de 2008 este é, contudo, o que mais se aproxima da memória directa do álbum de estreia.

Beirut em Lisboa

A agenda de concertos para este ano começa a pesar nas carteiras. Como se não houvesse já oferta digna de entusiasmo, agora é confirmado um concerto para o ptojecto Beirut, de Zach Condon, para o Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a 27 de Julho. Recorde-se que, três dias antes, o músico actua em Sines, no Festival Músicas do Mundo.

Em conversa: Mão Morta (3/3)

Concluímos hoje a publicação de uma entrevista (em três partes) com Adolfo Luxúria Canibal, dos Mão Morta. Este texto integral aqui publicado serviu de base a um artigo publicado na edição de 24 de Março do DN. A foto (tal como as dos posts anteriores, do espectáculo Maldoror) foi cedida pela Cobra Discos.

Maldoror, o disco está a ser vendido apenas nos espectáculos e no site da Cobra Discos...
É uma maneira diferente de editar. E uma maneira de controlar custos. A maneira como os preços dos discos em Portugal disparam é uma coisa incompreensível. Compro a maior parte dos discos em França, a metade do preço do que se vê cá. E os franceses ganham mais que cá se ganha. Há coisas que não se compreendem. Nós baixamos o preço, para que os discos possam ser vendidos a um preço razoável, mas depois vendem-se ao preço dos outros! Como é possível? Estamos a tentar fazer esse controle para que se possa dizer que os discos de Mão Morta custam apenas o preço que é justo pagar. Não há necessidade de fazer dos discos dos Mão Morta um objecto de ouro que não são. Temos de encontrar esquemas que façam com que os preços não subam. Para este Maldoror o esquema tem a ver com isso. Não há intermediários e somos nós quem controla o preço final. Mais tarde, se porventura houver sobras e o disco for para lojas, que haja pelo menos, também um controlo.

Terem uma editora vossa [a Cobra] a trabalhar a vossa própria música, é um valor acrescentado?
Para nós é. Dá-nos um controlo do que vendemos, de como vendemos. Dá-nos uma perspectiva de todo o circuito de comercialização que, de outra maneira, não teríamos.

E os Mão Morta passaram por todo o tipo de editoras, das multinacionais às independentes...
Exactamente. Mas não há nada como fazer esta quase auto-edição para termos uma noção mais real do que é todo o mundo da comercialização da música.

Quem tem hoje os direitos sobre a memória da música dos Mão Morta?
Depende. As coisas da BMG são da BMG e as da NorteSul são da NorteSul... O que era da Ama Romanta comprámos. E o que era da Área Total também foi comprado. E o resto pertence-nos a nós. O que é Cobra também é nossa. Só não temos direitos fonográficos sobre os quatro discos que editámos na BMG [Vénus em Chamas e Mão Morta Revisitada] e NorteSul [Há Já Muito Tempo Que Nesta Latrina o Ar Se Tornou Irrespirável e Primavera de Destroços].

Conseguem ter o grosso da vossa discografia nas vossas mãos. Pensam trabalhar esse fundo de catálogo?
Sim, estamos a pensar reeditá-los todos, a começar pelo Mutantes S.21. Essa será a prioridade em termos de reedição. Mas preferimos editar coisas novas a reeditar coisas antigas. De maneira que a coisa tem sido sempre adiada. Mas essa reedição, se não houver nada extra-Mão Morta, será agora a prioridade depois do Maldoror.

Vão reeditar o álbum também em vinil, para usar a BD que acompanhava o LP?
Temos várias hipóteses em cima da mesa e nada decidido ainda. Uma das hipóteses é o dois em um. Ou seja, reeditar em CD, mas com a BD. A ideia sempre foi, na Cobra, de fazer edições cuidadas. Estamos a pensar em abandonar o formato de digipack para fazer agora estes formatos como o do Maldoror. Formatos mais artesanais, que dão mais trabalho. Porque somos nós que colamos, que metemos os discos nas capas... Mas tem outro sabor.

Dylanesco

É isto que faz com que I'm Not There esteja no coração vivo, vi-víssimo, da mais fascinante, ousada e livre arte contemporânea.
Porquê? Porque à esquerda temos Bob Dylan, o verdadeiro Bob Dylan, numa imagem de meados dos anos 60 — como a história o registou. Porque à direita temos Bob Dylan, isto é, Cate Blanchett a representar verdadeiramente o verdadeiro Bob Dylan — como a ficção o pode mostrar e reinventar.
Dito de forma mais crua, cruamente política: esqueçam as impos-turas televisivas da "fidelidade" aos factos e da "reconstituição" dos mesmos. Basta dessas mentiras piedosas que, em última instância, massacram o tecido social — e a inteligência de cada cidadão — com a miséria formal, temática e existencial das telenovelas. O novo filme de Todd Haynes é sobre essa liberdade de Cate Blanchett ser uma emanação de Bob Dylan e, no entanto, não deixar de ser... Cate Blanchett — é um filme sobre o prazer de sabermos que a realidade se faz também dessa ambivalência sem solução. Para ver e rever.

quarta-feira, março 26, 2008

Richard Widmark (1914 - 2008)

Morreu o actor que encarnou o modelo de detective pós-clássico, sistematizado em Madigan (1968), de Don Siegel, depois retomado na série televisiva homónima (1972-73) — Richard Widmark foi vítima de doença prolongada, contava 93 anos.
Como principal ou secundário, quase sempre em papéis de duro, Widmark como que nasceu com vocação lendária, uma vez que a sua primeira interpretação em cinema — O Denunciante/Kiss of Death (1947), de Henry Hathaway — lhe valeu uma nomeação para o Oscar de melhor actor secundário e um Globo de Ouro de melhor revelação do ano. Presença frequente em westerns e policiais, trabalhou com grandes mestres de Hollywood, incluindo Elia Kazan (Pânico nas Ruas, 1950), Samuel Fuller (Mãos Perigosas, 1953), Vincente Minnelli (Paixões sem Freio, 1955), Otto Preminger (Santa Joana, 1957) e John Ford (Terra Bruta, 1961 — foto). A partir de finais dos anos 80, confessou-se cansado e desiludido com as novas formas de trabalho no seio da indústria cinematográfica — o seu derradeiro filme, A Estrada do Poder, dirigido por Herbert Ross, tem data de 1991.

Desportos digitais

Angelina Jolie ou Britney Spears?
A resposta é: Angelina Jolie e Britney Spears.
***
Assim vão os desportos visuais na era digital. A consciência prática de que todas as imagens são manipuláveis tende a generalizar os gestos mais irrisórios, em nome de um humor sem alma — e, é caso para dizer, sem corpo. Há mesmo sites — como este: Morph Thing — que se dedicam a executar e encorajar a prática banal do morphing. Ou melhor: a banalização da prática do morphing (cujas potencialidades criativas não estão em causa). É uma maneira infantil de nos fazer sentir, contornando-o, o medo que temos de olhar uns para os outros.
Na lista de rostos disponíveis para se "fundirem", e ficando-nos pela letra "A", estão Arnold Schwarzenegger, Audrey Hepburn e... Adolf Hitler — chama-se a isto indiferenciação do humano. Num duplo sentido: de confusão de todas as referências e de triunfo da indiferença.

Música em força no IndieLisboa

A 5ª edição do Festival IndieLisboa, que decorre de 24 de Abril a 5 de Maio volta a apostar na música como uma entre as suas mais fortes marcas de identidade. Como sempre, o cartaz mostra uma enorme variedade de secções, entre a competição e demais espaços não competitivos. Entre estes últimos as propostas são diversificadas, e vão de um panorama do novo cinema romeno (oportuna escolha depois do triunfo em Cannes no ano passado e de outras revelações entretanto chegadas a estes lados), a mostras do cinema do catalão José Luis Guerin (autor do inesquecível Comboio de Sombras) ou de Johnnie To (de Hong Kong). Não faltam antestreias, este ano com filmes como It’s a Free World, de Ken Loach, Happy-Go-Lucky de Mike Leigh, Terra Sonâmbula de Teresa Prata ou O Filho de Rambow, de Garth Jennings. Contudo, a mais forte concentração de grandes propostas mora na secção IndieMusic, este ano com onze filmes programados, entre os quais o espantoso Patti Smith: Dream Of Life (na foto), de Steven Sebring, estreado há meses em Sundance e com primeira exibição europeia na Berlinale. O IndieMusic inclui, além do documentário sobre Patti Smith, filmes como Lou Reed’s Berlin, de Julian Schnabel, Joy Division, de Grant Gee, Scott Walker: 30 Century Man, de Stephen Kijak, Joe Strummer – The Future is Unwritten, de Julian Temple ou Bananaz, de Ceri Levy. Há dois filmes portugueses nesta secção. São eles É Dreda Ser Angolano, de Fazuma e Kuduro – Fogo no Museque, de Jorge António.

Há potros no rock'n'roll

Chamam-se Foals. Ou seja, "potros" (cavalos com menos de um ano de vida, para quem é menos dado às artes equestres). Os Foals acabaram de editar Antidotes, o seu álbum de estreia no qual deixam claro, apesar do predomínio de referências de outras latitudes, porque apontam Steve Reich como uma das maiores fontes de respeito. Cassisus, o novo single, guarda as respostas nos compassos finais... Aqui fica o teledisco.

Suzanne Vega na Guarda

Suzanne Vega tem uma data marcada para o dia 9 de Julho, na Guarda. O espectáculo terá lugar no Teatro Municipal daquela cidade. Haverá outro concerto em Portugal, não estando ainda divulgado o dia e local... Ficamos à espera.

Em conversa: Mão Morta (2/2)

Continuamos a publicação de uma entrevista (em três partes) com Adolfo Luxúria Canibal, dos Mão Morta. Este texto integral aqui publicado serviu de base a um artigo publicado na edição de 24 de Março do DN. A foto (tal como a do post anterior, do espectáculo Maldoror) foi cedida pela Cobra Discos.

Depois de Müller no Hotel Hessischer Hof, esta é uma segunda transformação vossa de um texto para palco. E, depois, do palco para disco. Maldoror reforça esse lado de vivência teatral dos próprios Mão Morta?
Sim. São aqueles discos que os pensamos não como discos mas como espectáculos. Vêm ambos de um incentivo externo, num deles a escrita do Heiner Müller, no outro a do Isidore Ducasse. Pensámo-los como espectáculo. Gravámo-los, pensando depois que poderia dar um disco. Mas não sabíamos que faria sentido só como música em disco. Mas depois do trabalho feito sentimos que tinha sentido e avançámos para a edição.

O booklet, que inclui o texto e algumas ilustrações, talvez garanta uma alternativa à fisicalidade que o palco também dá... Este disco precisava de um contexto visual diferente como objecto.
Quando se faz um disco destes normalmente usam-se as imagens que se associam ao espectáculo. Mas nós aqui fugimos a isso. Isso terá mais a ver com o DVD. Mas isto, apesar de gravado ao vivo no espectáculo, de manter inclusivamente as palmas, não é o espectáculo. É um outro objecto. Nem sequer é metade do espectáculo. Tem de existir por si, ser auto-suficiente. E por isso tem de levar um tratamento como objecto consentâneo com isso. Ou seja, um tratamento de capa, de booklet, de imagens, que tem a ver com o que a pessoa está a escutar, que possa complementar isso, mas que não tenha a ver com o espectáculo, que é outra coisa.

Haverá um DVD...
Sim, está ainda em montagem e mesmo a ser filmado. O Nuno Tudela fará um documentário sobre a digressão, que servirá como extra. Faz todo o sentido haver esses acréscimos que valorizam o objecto.

Os Mão Morta são os mesmos quando fazem este tipo de espectáculos, quando comparados com a mesma banda quando dá concertos?
Bom, os mesmos são, o trabalho é que é diferente. Há um outro tipo de concentração, de trabalho de casa, de postura. Um concerto em Paredes de Coura dos Mão Morta é diferente do que se vê no Theatro Circo ou na Culturgest. Não só por causa do espaço mas porque são concepções diferentes de espectáculo.

A experiência de adaptar Heiner Müller e, agora, os Cantos de Maldoror para teatro traz outra identidade cénica aos Mão Morta? A digressão do Nus tinha uma cenografia trabalhada...
O Nus tinha, mas as razões eram diferentes. Essa encenação partiu mais do técnico de luz. Tinha mais a ver com a exploração dos desenhos de luz que com a ideia de um espectáculo a partir do disco. É evidente que a partir dessas ideias base de luz se trabalhou um espectáculo. Mas o conceito era diferente do Müller ou deste Maldoror.

É limitativo, para quem cria a música, ter um texto de base para seguir? Isto por oposição à letra de uma canção original, que pode ser alterada à medida que a composição evolui...
Limitativo não é. Para quem compõe, e não é o meu caso, porque é mais para o Miguel, para o Vasco, para o Rafael, é diferente trabalhar uma canção a partir de um texto ou do nada, onde depois se coloca um texto. Aqui, a trabalhar textos que não são nossos, e que envolvem alguma sacralidade, um respeito, a grande preocupação deles enquanto compositores não era a de deixarem o texto respirar, darem-lhe importância. A música funciona quase como um invólucro para a música. Eles estão a trabalhar para dar o primeiro plano ao texto e não à música. E no Maldoror nota-se muito isso. A leitura interfere com o texto, o texto interfere com a música... Mas há um grande respeito pelo texto. Um máximo cuidado para que o texto não saia desvalorizado, apagado, pela música.

Se o Miguel Pedro agora propuser a adaptação de um outro livro, dá-lhe mais dez anos de espera?...
Dou-lhe com o livro na cabeça... (risos)

Há outro autor que gostassem de trabalhar?
Não há... Estas coisas acontecem de repente. O Müller, por exemplo, foi uma coisa repentina, um amor à primeira vista. Conhecia-lhe o nome mas não a obra deles antes de começarmos a trabalhá-lo. Não há assim nenhum livro que seja de cabeceira como era o caso dos Cantos de Maldoror. Há autores interessantes... Mas não temos nada pensado. Neste momento ainda temos espectáculos para terminar a tournée do Maldoror. E estamos de tal maneira dentro dele que nem queremos que nos falem num outro espectáculo. Isto são dois anos de trabalho do Maldoror, mais um ano para trás a pensar nisto. São três anos das nossas vidas mergulhados no Maldoror... Só conseguimos pensar numa coisa mais leve, mais rock’n’roll, meia bola e força. E nos próximos tempos é isso que vai acontecer.

Um próximo disco será, portanto, certamente diferente do Maldoror...
Será rock’n’roll pela certa.
(conclui amanhã)