sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Salazar a cores (parte II)

Já aqui comentei a campanha de lançamento de uma série de livros sobre Salazar. De tão óbvio, faltou referir um conceito expresso nos textos promocionais, sintomático da visão "cândida" da história que marca toda a campanha. Assim, como uma espécie de subtítulo de Os Anos de Salazar, surge esta frase exemplar: 'O que se contava e ocultava durante o Estado Novo'. Que quer isto dizer? Que o Estado Novo tinha uma censura? Sim, claro: a repressão de muitas actividades, do jornalismo aos discursos artísticos, é uma componente essencial para compreendermos a dinâmica da ditadura salazarista. Em todo o caso, insisto, vale a pena atentarmos no que aquela frase diz, não sobre o Estado Novo, mas sim sobre o entendimento filosófico do nosso presente.
Em boa verdade, estamos perante a mais linear mentalidade televisiva, alicerçada num infantil jogo de escondidas. De acordo com este discurso, conhecer — e, em particular, conhecer a história colectiva — é apenas "destapar" o que estava "tapado". Assim se promovem duas ilusões muito comuns, presentes tanto no voluntarismo bem intencionado de alguns telejornais como na encenação pornográfica do Big Brother — primeira ilusão: o passado é apenas um território de coisas "visíveis" e outras "por mostrar", sendo indiferente a especificidade do olhar que a ele regressa; segunda ilusão: quando se "mostra" o que permanecera "invisível", emerge uma espécie de verdade apaziguada.
Na prática, esta é uma filosofia da transcendência mais equívoca. O que nela se recalca é que não existem factos que não sejam factos filtrados/revistos/pensados por algum olhar, quer dizer, por algum sujeito histórico. Como diria o grande Renoir, chacun a ses raisons.