quinta-feira, fevereiro 28, 2008

Salazar a cores

Subitamente, o nosso quotidiano surgiu invadido por imagens de António de Oliveira Salazar (1889-1970). Mais concretamente, em muitos painéis publicitários, em particular nas paragens de autocarros, o rosto de Salazar apareceu com um tratamento cromático "warholiano". A qualidade formal do trabalho é apenas curiosa, fechada como está num gesto muito básico de "citação/imitação" — seja como for, na sua simples existência há algo de suavemente libertador. Um pouco como quando um sólido trabalho de investigação ou ficção (literária, cinematográfica, etc.) consegue contrariar as resistências à abordagem do Holocausto dos judeus na Segunda Guerra Mundial.

Neste caso, na sua bizarra solidão semiológica, as imagens conseguem superar uma certa paralisia iconográfica — afectiva, política e, em última instância, filosófica — ainda alicerçada nos discursos de libertação da ditadura (salazarista, precisamente), discursos gerados com o 25 de Abril de 1974. Dito de outro modo: muitas vias correntes de abordagem da figura histórica de Salazar continuam dependentes de maniqueísmos ideológicos que, ainda há pouco tempo, desembocaram nesse lamentável fenómeno de "entretenimento" que foi o concurso Os Grandes Portugueses.

Estas imagens servem para promover Os Anos de Salazar, colecção de livros a ser lançada pelo Correio da Manhã. Impossível dizer seja o que for sobre tal iniciativa, a não ser que o seu leque de colaboradores — jornalistas, historiadores, professores, etc. — se apresenta imenso, imensamente rico e diversificado [NOTA: na respectiva ficha, o jornalista identificado como 'João Lopes' não é o redactor deste post e co-autor deste blog].

Seja como for, vale a pena referir que o discurso de apresentação da obra é muito menos interessante que as imagens que a estão a promover. Repare-se neste texto:

"A verdade histórica não é negra nem é branca e não conhece cores políticas. A informação rigorosa também não. É isenta e imparcial, mas fornece todos os tons e todos os factos para que seja você a decidir, a pensar, a ter uma opinião. Os Anos de Salazar é uma colecção inédita que pode despertar ódios antigos e paixões reprimidas, mas que vai certamente ajudar a compreender a política, a cultura, a economia e a sociedade de um dos períodos mais controversos da nossa história. Só assim, mantendo o passado bem presente, se constrói o futuro."

Insolitamente, até mesmo no seu catastrofismo "psicanalítico" (ódios antigos e paixões reprimidas), este é um discurso tocado por um mitologia muito típica do imaginário do pós-25 de Abril, imaginário jornalístico nas suas raízes, sobretudo televisivo na sua prática ideológica. Em que consiste tal mitologia? Na promoção da crença de que, apesar das convulsões da história (e sobretudo perante essas convulsões), é possível abordar os factos a partir de uma espécie de castidade ontológica que possuiria a virtude, tendencialmente divina, de doar em estado de imaculada virgindade historiográfica todos os ruídos e silêncios da própria história colectiva — "para que seja você a decidir", como em qualquer banal forum televisivo.

Insolitamente, insisto, este é um discurso casto e auto-reprimido, em tudo e por tudo contrastante com a agressividade formal da campanha promocional da própria obra. Em boa verdade, semelhante contraste apenas confirma que, para o melhor e para o pior, um dos terrenos sociais em que tudo é pensado de forma ideológica é a publicidade. Afinal de contas, a campanha diz algo de muito simples, porventura essencial para lidarmos com a herança de Salazar e do Estado Novo. A saber: nenhuma imagem é tabu, nem mesmo a imagem infinitamente polémica de Salazar. Exactamente o contrário da atitude que preside ao enunciado beatificador de isenção e imparcialidade.

Como é óbvio, não está em causa a honestidade da obra e dos seus autores. Como não se duvida da possibilidade de Os Anos de Salazar vir a desempenhar um papel importante no muito necessário trabalho de revisitação, releitura e reavaliação do nosso século XX. O que importa discutir também é esta idealização pueril que transfere para "você" (o sujeito que supostamente decide) todo o trabalho de construção/desconstrução da história.

De facto, a história não é uma paisagem transparente que baste "fotografar" e "reproduzir". Aliás, como qualquer historiador sabe — e qualquer jornalista pode confirmar —, a simples escolha de um lugar para pousar a "máquina fotográfica" arrasta consequências específicas. Mudar esse lugar é sempre, literalmente, mudar o ponto de vista, isto é, gerar uma imagem diferente. Tudo isso faz parte do risco de fazer história, isto é, de a desejar.