quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Elogio do sagrado (*)

Os títulos mais ou menos definitivos ("o mais puro", "o mais cinéfilo", etc., etc.) com que podemos consagrar os filmes são um exercício saboroso, mas a sua consistência deve ser vista com alguma prudência e, acima de tudo, contrariando preconceitos e noções totalitárias de gosto. Por isso mesmo, qualquer alma sensata reconhecerá que não é possível estabelecer como verdade absoluta qual o filme que mais e melhor pode simbolizar as virtudes do cinema clássico de Hollywood. Ainda assim (ou por isso mesmo), podemos adiantar que muitos não ficariam chocados se tal título imaginário fosse atribuído a Johnny Guitar (1954), de Nicholas Ray, com Joan Crawford, Sterling Hayden e Mercedes McCambridge.
De facto, a história de Vienna (Crawford) e desse homem da guitarra (Hayden) que emerge de um passado enigmático, ferido de nostalgia e dor, é uma daquelas ficções plurais — ligando a vocação épica do western com as paisagens afectivas do melodrama — que resumem a vitalidade do próprio classicismo. Das cores quentes do trucolor ao lendário diálogo em que Hayden e Crawford se repetem, sem nunca dizerem o mesmo, tudo labora aqui para a sagração de uma forma de sentir o cinema como uma arte única de celebração da vida e entrega plena aos sobressaltos da ficção. Ver ou rever Johnny Guitar é, por isso, redescobrir um cinema completamente feliz no interior da sua irredutibilidade estética.

* Johnny Guitar (1954), de Nicholas Ray: Cinemateca, hoje, 21h30.