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Yuval Abraham e Basel Adra: notícias da Cisjordânia |
Foi distinguido no Festival de Berlim, nos Prémios do Cinema Europeu e nos Oscars (em todos os casos, com o prémio de documentário): No Other Land é uma invulgar experiência de cinema documental, assinada por um colectivo israelo-palestiniano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 fevereiro, antes da cerimónia dos Oscars).
Que dizer de um filme como No Other Land (disponível na plataforma Filmin)? Como dar conta da saga de dois amigos, Basel Adra e Yuval Abraham, observando as tragédias vividas na Cisjordânia, na região de Masafer Yatta, com as tropas israelitas a destruir as aldeias palestinianas porque aquela passou a ser uma “zona” de operações militares?
Na sua energia humanista, o filme tornou-se um genuíno acontecimento global, acumulando distinções nos mais diversos contextos — por exemplo, no Festival de Berlim e nos Prémios do Cinema Europeu, estando nomeado para o Oscar de Melhor Documentário. Que dizer e, sobretudo, como dizê-lo? Talvez começando por reconhecer a dialéctica, aprendida com Jean-Luc Godard, que nos leva a pensar as relações entre o nosso “aqui” [ici] e o “algures” [ailleurs] para que as imagens nos convocam.
Com maior ou menor consciência do facto, somos diariamente expostos a imagens do conflito israelo-palestiniano, em particular dos cenários devastados de Gaza. São imagens quase sempre organizadas em função dos códigos dominantes no espaço televisivo: breves, aceleradas, conduzidas por uma voz off que funciona como um texto autónomo que afirma o seu poder determinista, no limite menosprezando qualquer relação cognitiva com o que está a ser mostrado.
A versão mais obscena de tudo isto acontece, também diariamente, quando as televisões colocam três ou quatro comentadores em pequenos ecrãs dentro do ecrã geral, ao mesmo tempo que, ao lado, surge um clip muito breve que passa em loop, como um gif da Internet. Basta alimentar a ilusão de que se está a mostrar alguma “coisa” — aliás, a repetição sonâmbula das imagens só pode favorecer a indiferença dos olhares. Para lá da seriedade de quem as enuncia, as “análises” criam um ziguezague, também ele em loop, até que o relógio imponha a entrada do próximo intervalo para publicidade.
Há uma maneira simples, certamente política, de definir o poder cultural deste tipo de (des)informação. A saber: somos convocados para aceitar um sistema narrativo, acelerado, tendencialmente sensacionalista, que menospreza todos os valores herdados do classicismo cinematográfico. São eles: a exigência de escolher imagens pertinentes; o cuidado com a ligação de uma imagem com outra imagem (montagem), de modo a favorecer algum modo de sistematização cognitiva; enfim, a preservação de uma duração de percepção (e escuta) que não favoreça os esquematismos panfletários e as chantagens militantes.
Há uma maneira simples, certamente política, de definir o poder cultural deste tipo de (des)informação. A saber: somos convocados para aceitar um sistema narrativo, acelerado, tendencialmente sensacionalista, que menospreza todos os valores herdados do classicismo cinematográfico. São eles: a exigência de escolher imagens pertinentes; o cuidado com a ligação de uma imagem com outra imagem (montagem), de modo a favorecer algum modo de sistematização cognitiva; enfim, a preservação de uma duração de percepção (e escuta) que não favoreça os esquematismos panfletários e as chantagens militantes.
Basel e Yuval cruzam-se nas convulsões de uma história que conhecem de modos inevitavelmente diferentes. O primeiro é palestiniano e, enquanto jornalista, tem vivido uma existência de activista que se exprime através de dramáticas memórias familiares, tanto quanto da observação, por vezes em sério risco de vida, da destruição de casas e escolas (até mesmo de uma casa de banho...). O segundo, também jornalista, é israelita e tem-se empenhado em documentar e divulgar as formas de violência usadas pelas entidades israelitas naquelas paragens. Sem esquecer que No Other Land nasce de uma realização assinada por um colectivo israelo-palestiniano, envolvendo, além de Basel e Yuval, Hamdan Ballat e Rachel Szor.
Que podemos fazer? A pergunta, formulada à distância, pode ser minha ou do leitor. Em boa verdade, é a pergunta que Basel e Yuval partilham numa desencantada conversa próximo do final do filme, reconhecendo que não têm uma resposta concisa — por alguma razão, o seu filme não se apresenta como uma “tese” sobre o conflito israelo-palestiniano, mas sim um documento sobre as pessoas e as casas de Masafer Yatta.
A certa altura, num diálogo recheado de humor durante uma viagem de automóvel, Basel diz a Yuval que ele está, talvez, demasiado “entusiasmado”. Porquê? Porque Yuval, algo desiludido com as poucas visualizações do seu mais recente artigo, julga que pode chegar a Masafer Yatta e “resolver tudo em dez dias”... Em tom obviamente mais sério, encontramos um eco disso mesmo nas palavras que Yuval profere num debate num canal televisivo israelita: “Como israelita, é para mim muito importante sublinhar que não creio que possamos ter segurança enquanto os palestinianos não tiverem liberdade.”
No Other Land envolve uma chamada de atenção implícita para dois esquematismos que, desgraçadamente, têm vida fácil em alguns aparatos televisivos: o primeiro desses esquematismos transforma o horror da destruição em Gaza numa forma de apagamento da infâmia criminosa do Hamas e outros grupos terroristas; o segundo confunde a crítica metódica do actual governo de Israel com o esvaziamento factual e simbólico da história da própria nação israelita. Resumindo: No Other Land é um filme que, mesmo no seu cristalino cepticismo, nos ajuda a resistir à formatação simplista das imagens que nos rodeiam.
>>> 2 março 2025: o Oscar para No Other Land.
>>> Basel Adra e Yuval Abraham no New York Film Festival (2024), em conversa com o programador Justin Chang.