sexta-feira, fevereiro 07, 2025

O labirinto da dor

Kieran Culkin e Jesse Eisenberg: a comédia é uma coisa séria

Acumulando as tarefas de actor, argumentista e realizador, Jesse Eisenberg faz o retrato de dois primos marcados pelas memórias do Holocausto. A aventura existencial é partilhada com Kieran Culkin e não será uma surpresa que o filme surja com algum destaque nas nomeações para os Oscars.

É bem possível que, ao descobrirmos um filme como A Verdadeira Dor, sejamos levados a supor que os seus actores principais — Jesse Eisenberg e Kieran Culkin — estão apenas a fazer variações sobre personagens que os consagraram. No caso de Eisenberg, vem à memória a sua composição nervosa e exuberante, interpretando Mark Zuckerberg, em A Rede Social (2010), a obra-prima de David Fincher sobre o nascimento do Facebook; quanto a Culkin, o misto de provocação e fragilidade da sua presença faz-nos pensar na figura do filho rebelde da família Roy na séria Succession (2018-2023).
Mesmo admitindo que tais “paralelismos” possam ter alguma lógica, o filme merece a nossa atenção e disponibilidade para lá de tão mecânicas impressões. Estamos perante uma proeza tanto mais admirável quanto o seu registo de “comédia de dois amigos” (“buddy comedy”, de acordo com o rótulo tradicional de Hollywood) não exclui, antes serve de auto-estrada narrativa, para uma dimensão intimista, um verdadeiro labirinto trágico.
Infelizmente, uma vez mais, o título português vicia a significação do original. Assim, não se trata de colocar em cena um sofrimento abstracto e generalista que seria “a” verdadeira dor. O que conta é que esta é “uma” verdadeira dor (A Real Pain), indissociável de referências muito concretas, impossíveis de adaptar a qualquer outra situação. David Kaplan (Eisenberg) e Benji Kaplan (Culkin) são dois primos que decidem conhecer melhor as suas raízes judaicas, visitando a Polónia e alguns lugares onde ecoam os crimes do Holocausto — o objectivo final da viagem é a descoberta da casa onde viveu a avó que marcou de forma muito especial a existência de ambos.
Escrito e realizado pelo próprio Eisenberg, o filme consegue preservar os sobressaltos da comédia sem que isso impeça a crescente inquietação que, envolvendo as memórias da Segunda Guerra Mundial, nos remete para a interrogação primordial da identidade judaica. Avesso a generalizações fáceis ou a simbolismos mediáticos, A Real Pain possui as qualidades de um romance capaz de nos fazer ver e sentir a encruzilhada de factos, valores e perguntas de que se faz essa mesma identidade.
Garantem os oráculos de Hollywood que Culkin é um sério candidato a arrebatar o Oscar de melhor actor secundário, ao mesmo tempo que Eisenberg pode conseguir, pelo menos, uma nomeação para melhor argumento original. Há outra maneira de dizer isto: dos intérpretes que solicitam a nossa identificação até à elaboração narrativa que nos envolve numa ambígua ligeireza, eis um filme capaz de “integrar” dois actores muito populares sem os obrigar a simplificar uma aventura existencial que desafia, ponto por ponto, as suas imagens “de marca” — prova muito real disso mesmo será, por certo, o rosto de Culkin no espantoso plano final do filme.